Mesmo olhar azul-acinzentado. Mesmo porte. Mesmo rosto que esteve colado ao meu poucas horas antes. O homem da noite anterior.
Ele passou os olhos pela sala — e por um segundo, parou nos meus.
Meu coração disparou.
Eu o reconheci. E pela tensão sutil em seu maxilar, eu soube: ele também me reconheceu.
O tempo parecia atravessar a sala com um atraso cruel.
Sebastian Montenegro.Claro que só poderia ser ele. O nome foi dito por alguém, talvez pelo presidente ou por um dos diretores que o acompanhavam. Não prestei atenção. Só conseguia escutar o meu próprio coração martelando dentro do peito, como se tentasse me lembrar de tudo o que aconteceu na noite anterior, com uma clareza que agora parecia injusta.
Ele usava um terno cinza escuro, sob medida, que o deixava ainda mais alto, mais... distante. Os cabelos estavam penteados para trás com uma certa displicência elegante, e os olhos — os mesmos que estiveram sobre os meus poucas horas atrás — vasculharam a sala por um instante antes de pousarem em mim novamente. Só por um segundo, mas foi o bastante.
Virei-me ligeiramente, como se buscar algo na pasta fosse a prioridade mais urgente do mundo, mas minha pele queimava. Eu sentia.
— Bom dia a todos — ele começou, com a voz firme, baixa, aveludada.
Ela ressoou diferente agora. Talvez porque eu a conhecia. Não como colega. Como mulher.
— Sou Sebastian Montenegro. Sei que essa transição não foi fácil para muitos, considerando a perda recente do meu irmão, Augusto. Não estou aqui para substituir ninguém. Estou aqui para dar continuidade ao que precisa seguir em frente.
Ele falava bem. Objetivo, direto, com uma autoridade que não se impunha pela força, mas pela presença.
— Teremos tempo para alinhar os processos, revisar funções e restabelecer prioridades. Mas, por agora, gostaria de conhecer pessoalmente cada um dos principais membros da equipe executiva.
Meu estômago se revirou. Claro. Claro que isso aconteceria. O universo não tinha limites na arte de brincar comigo.
Um a um, os colegas se apresentaram. Eu mantinha os olhos baixos, a respiração contida. Até que chegou a minha vez.
Levantei.
— Isadora Riviera. Assistente executiva. Estava nesse mesmo cargo com o... sr. Augusto Montenegro.
Por um segundo, o silêncio esticou mais do que deveria.
Sebastian me olhou como se já soubesse cada palavra que eu diria. E então, a surpresa discreta veio: um sorriso. Pequeno, torto. Quase imperceptível para os outros. Mas eu vi.
Vi e entendi. Era a ironia no canto dos lábios dele, o reconhecimento sutil de que aquilo tudo era uma piada do destino.
Eu, assistente do irmão morto. Ele, herdeiro inesperado.
E nós dois... estranhos que não eram mais tão estranhos assim.
— Prazer, Senhorita... Isadora. — ele disse, com um tom que os outros jamais notariam, mas eu notei.
Era como se ele estivesse dizendo outra coisa. Como se as palavras carregassem uma memória entre as sílabas. Algo como: “É mesmo você.”
Assenti com um leve movimento de cabeça e sentei novamente, fingindo naturalidade. Mas meu coração estava correndo uma maratona.
Eu já vivi situações desconfortáveis na vida.
Mas nenhuma delas envolvia um homem que conheceu meu corpo antes mesmo de saber meu sobrenome — e agora era, oficialmente, meu chefe.O destino não estava apenas tirando com a minha cara.
Ele estava se divertindo à beça.A reunião durou o que pareceu uma eternidade e meia.
Sebastian — sim, agora eu sabia o nome dele, completo e carregado de herança — falou sobre metas, estrutura, projetos a revisar, e novos rumos. Um discurso frio, profissional, eficaz. Como se a noite passada não tivesse existido.
Eu mantive meu rosto impassível. Nenhuma vírgula de expressão. Só a postura ereta, o blazer alinhado, o ar de assistente executiva que sabe separar vida pessoal de profissional. Mesmo que minha vida pessoal tivesse, na noite anterior, literalmente, dormido ao meu lado.
Assim que os cumprimentos finais foram feitos e os membros da equipe começaram a se levantar, peguei minhas coisas discretamente, pronta para sair entre os primeiros. Quanto antes eu sumisse dali, melhor. Se possível, virar poeira. Uma névoa elegante.
Mas mal dei dois passos.
— Senhorita Riviera, por favor. Pode ficar mais um pouco?
A voz era educada. Quase suave. Mas cada sílaba me arrepiou como se carregasse um segundo significado que só nós dois conhecíamos.
Eu travei no lugar. Devagar, virei o rosto.
Ele me encarava com aquele mesmo olhar sereno que ninguém desconfiaria. Mas eu sabia o que havia por trás.Assenti com um sorriso polido, profissional, como quem diz “pois não, senhor”, e esperei os últimos saírem. A porta se fechou com um clique surdo. O silêncio que se seguiu foi estranho. O tipo de silêncio que preenche a sala com tensão invisível.
— Achei que fosse ser demitida — soltei, tentando quebrar o gelo, embora o meu estômago continuasse em nó.
Ele riu, baixo. Depois pigarreou.
— Eu só queria entender... por que você foi embora enquanto eu dormia?
A pergunta caiu como um raio. Demorou um segundo até eu processar. Outro para reagir.
— O quê? — me engasguei, completamente despreparada.
Ele apenas me olhava, braços cruzados, encostado levemente na mesa.
Tossi, limpei a garganta, ajeitei o meu blazer, qualquer coisa para recuperar alguma dignidade.
— Eu... — inspirei fundo. — Achei que não fazia sentido acordar ao seu lado. Foi só uma noite. Uma boa noite, mas... ainda assim, uma noite. Não somos... — fiz um gesto com a mão —... namorados apaixonados de série romântica.
A ironia escorregou sem esforço. Era a única defesa que me restava.
Sebastian esboçou um sorriso. Um canto de boca só, do tipo que sabe mais do que diz.
— Concordo — disse ele, sem perder o tom calmo. — Foi só uma coisa de uma noite.
Fez uma pausa, depois continuou: — Mas eu realmente não fazia ideia de que te veria de novo. Muito menos aqui... trabalhando comigo.A tensão se assentou entre nós como uma bruma densa. Quente. Silenciosa.
Eu tentei respirar dentro dela.— Se quiser — falei, sem olhar diretamente para ele —, pode me mover de cargo. Imagino que ter sua assistente executiva... envolvida num episódio assim não seja o mais confortável.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Estar aqui comigo, te deixa desconfortável?
— Claro que não — menti, sem nem piscar.
O silêncio seguinte foi quase indulgente.
Ele me olhou como quem lê um livro que já sabe o final, e ainda assim gosta da história.— Ótimo — disse por fim. — Então podemos começar com a agenda. A que era do Augusto... agora será a minha.
Assenti e caminhei até a cadeira próxima à sua.
Sentei-me com cuidado, abrindo minha pasta e retirando a agenda corporativa que sempre carregava comigo.— Algumas reuniões foram adiadas por conta do... — hesitei, olhando para ele. — Do funeral.
Ele não respondeu. Apenas assentiu com a cabeça, o maxilar um pouco mais tenso.
— As reuniões com os diretores das divisões internacionais estavam marcadas para essa semana, mas talvez devamos remarcar. Posso enviar um comunicado padrão. Também havia uma coletiva prevista... — parei, os olhos ainda na agenda, mas a mente muito além. — Foi por isso que você bebeu tanto ontem? O funeral que você foi...
Quando ergui os olhos, ele me olhava de volta. Havia algo diferente na expressão dele. Não era choque, nem incômodo. Era... compreensão.
— Sim — respondeu, simples. — Foi por isso.
E, naquele momento, como uma peça de quebra-cabeça que finalmente se encaixa, a imagem ficou clara: o homem que com quem bebi, beijei e levei para o hotel era um herdeiro de luto, sozinho em uma cidade que o via como um estranho, bebendo para esquecer o peso da herança e de um irmão morto que talvez ele nem tivesse amado. E agora, ele era o meu chefe.
Eu respirei fundo e voltei os olhos para a agenda. Fiz o que sempre fiz de melhor: trabalhei. Mas, lá no fundo, mesmo enquanto falava de reuniões, e-mails e prazos, eu sabia — nós dois sabíamos — que o que aconteceu naquela noite não ficaria lá. Porque estávamos sentados frente a frente... e o passado recente queimava por baixo da mesa.
Conversamos sobre a agenda por mais alguns minutos, preenchendo o silêncio com compromissos e planilhas como se fosse possível neutralizar tudo que havia entre nós com simples datas e horários. Era profissional. Estritamente profissional. Ou, ao menos, tentava ser.
Quando terminei de revisar os pontos principais, fechei a agenda com delicadeza. Já ia me levantar quando ele disse, casualmente:
— Poderia me acompanhar num tour rápido? Antes da reunião com os acionistas. Gostaria de ter uma noção melhor dos departamentos e das pessoas com quem vou lidar diretamente.
Assenti, ajeitando os cabelos atrás da orelha.
— Claro. Podemos ir agora, se quiser.
Ele levantou com o mesmo ar tranquilo, quase aristocrático, como se tudo ao redor girasse numa velocidade que ele já dominava. Eu peguei meu crachá, prendi no bolso do blazer e o conduzi pelos corredores que conhecia como a palma da minha mão — tentando, o tempo todo, não lembrar que horas antes esses pés tinham estado entrelaçados aos meus.
Apresentei-o aos diretores de marketing, financeiro, jurídico. Todos um pouco tensos e curiosos. Sebastian os cumprimentava com aquele olhar firme, postura impecável, com a voz baixa, mas segura. Ele sabia como causar impacto sem dizer muito. Era o tipo de homem que entra numa sala e, mesmo em silêncio, todos sentem.
Caminhamos até o segundo andar, onde estavam os setores operacionais. A cada departamento, eu fazia as apresentações e observava sutilmente como os olhos das pessoas se arregalavam ao descobrir que “o novo Montenegro” era jovem, bonito, charmoso e bem diferente de Augusto. Alguns ficavam visivelmente desconcertados. Outros, encantados.
— E por fim — anunciei, quando voltamos ao corredor principal —, seu escritório.
A porta ainda carregava a antiga placa com o nome de Augusto Montenegro. Abri e deixei que ele entrasse primeiro.
O cômodo estava exatamente como Augusto deixara: estantes impecáveis, objetos milimetricamente posicionados, livros e troféus frios, sem personalidade real. Era um ambiente calculado. Como Augusto era.
Sebastian caminhou até o centro da sala, os olhos percorrendo cada canto. A expressão dele mudou. Algo entre o desconforto e a melancolia.
— Jamais pensei que estaria aqui... — disse baixo. — No lugar dele.
Ele virou para mim, mas parecia falar consigo mesmo.
— E agora que estou... não sei dizer como me sinto.Aquelas palavras, tão humanas, me atravessaram. Eu abri a boca para dizer algo — não sabia exatamente o quê. Mas antes que qualquer som escapasse, a porta se abriu com firmeza.
Antônio Luiz Montenegro, entrou sem bater.
O peso daquele sobrenome entrou com ele. O fundador. O pai. O presidente.
— Senhorita. — disse com um leve aceno. — Dê-nos um minuto a sós, por favor.
O tom era cordial, mas firme. Como quem está acostumado a ser obedecido.
Olhei para Sebastian.
Ele não falou nada, mas assentiu sutilmente, com os olho. E eu saí.Fechei a porta atrás de mim com cuidado, e então caminhei até minha mesa no corredor adjacente.
Só quando me sentei percebi que estava prendendo a respiração. Expirei devagar, tentando retomar algum controle sobre meu próprio corpo, sobre minha cabeça, sobre... tudo.
Meus dedos repousaram no teclado do computador, mas não digitei nada. Em vez disso, fiquei ali, olhando para a tela apagada, como se ela pudesse me dizer como agir daqui pra frente.
Em poucos minutos, quando o presidente finalmente deixou o escritório. Em seguida, o ouvi a voz de Sebastian chamar pelo meu nome, depois o som de um estrondo, de algo caindo no chão vindo da mesma direção.
Eu me levantei rapidamente e fui até lá. Encontrei Sebastian com uma expressão transtornada, com objetos caídos no chão.
Antes que alguém o visse, fechei a porta.