Eu senti tudo ao mesmo tempo, o medo misturado à angústia.
— Meu Deus! — sussurrei, jogando o carro no acostamento e abrindo a porta sob a chuva. Corri até ele. Estava deitado de lado, com uma das mãos apoiada no asfalto molhado. A camisa branca colava no corpo dele como uma segunda pele, encharcada. Tinha cabelo escuro, bagunçado, e um rosto bonito, mesmo coberto de água e confusão. — Você está bem? — perguntei, agachando ao lado dele, o coração ainda disparado. Ele ergueu os olhos e soltou um meio sorriso. — Estou... — a voz era grave, arrastada. — Acho que caí mais de... bêbado do que por culpa do seu carro. Suspirei, aliviada e assustada ao mesmo tempo. — Meu Deus... Você podia ter morrido! Ele deu um riso rouco, com um olhar perdido no céu cinza. — Seria poético. — Não brinque com isso — rebati, séria. — Eu posso te levar ao hospital. — Não precisa. — Ele sentou-se devagar. — Não me machuquei. Só escorreguei direto no seu capô. Culpa minha. — Tem certeza? Você tá... claramente confuso. — Só... sobrecarregado — disse, esfregando o rosto com a mão. — Estou hospedado no centro. Se puder me deixar lá... seria ótimo. Hesitei por um segundo. O certo seria não me envolver, mas o certo já tinha me dado uma rasteira mais cedo. — Entra no carro — murmurei. — Eu te levo. Ele me lançou um olhar meio surpreso, talvez grato, e se ergueu. O andar era desequilibrado, mas os olhos... eram lindos, de um tom azul intenso e sombrio. Me deram calafrios. Dirigi em silêncio, enquanto ele parecia mergulhado em seus próprios pensamentos. O hotel era um dos mais famosos da cidade. Luxuoso, imponente, com colunas douradas na recepção e atendentes que falavam baixo, como se estivessem sempre num sussurro exclusivo para milionários. Ajudei-o até o elevador, depois pelo corredor acarpetado. O andar era alto. A vista das janelas laterais mostrava as luzes da cidade borradas pela tempestade. O quarto era amplo, elegante, com cortinas pesadas, piso em madeira escura e móveis de design moderno. Ele se largou no sofá de couro, exalando cansaço e álcool. — Você quer tomar alguma coisa? — ele perguntou, já se erguendo e indo até o frigobar. — Não precisa ficar, mas... eu agradeceria a companhia. Nem que fosse por uns minutos. A verdade é que eu não queria voltar pra casa. Nem para lugar algum. Minha alma estava sem endereço. — Aceito. Ele abriu uma garrafa de vinho tinto e serviu duas taças. Sentamos lado a lado no sofá. Ficamos um tempo em silêncio, saboreando o vinho e o momento. O momento em que estávamos igualmente pensativos. — Você parece... que não está bem — ele disse, num tom suave, observando meu rosto. — Desculpa. Não queria ser invasivo. Soltei um riso baixo, sem humor. — É o pior dia da minha vida. Ele bebeu um gole. — Posso dizer o mesmo. Mais um motivo para a gente brindar. — A quê? — perguntei, amargo no fundo da garganta. — À merda toda — ele respondeu, batendo de leve sua taça na minha. O vinho queimou levemente ao descer. — Meu namorado me traiu — soltei, sem rodeios. — Acabei de flagrá-lo na minha cama com outra. E pra completar... descobri que transferi, sem saber, o apartamento para o nome dele. Ele soltou um assobio lento. — Isso foi... pesado. — E você? O que aconteceu com você? Ele olhou para a taça, pensativo. — Meu meio-irmão morreu. O funeral foi hoje. — Sinto muito — disse, sincera. Ele me encarou. — Também sinto muito por você. Minhas defesas cederam. As lágrimas voltaram sem aviso, escorrendo sem que eu tivesse forças para contê-las. — Eu me dediquei a esse relacionamento. Segurei as pontas, banquei a esperança, o apoio, o chão. Ele tava desempregado, eu fiz tudo por nós... e ele... — minha voz falhou. — Ele já não me tocava há meses. Dizia que era estresse. Já eram seus sinais de que... algo estava errado, mas me forcei a acreditar que... ele estava estressado... Ele não disse nada. Apenas me olhou com uma firmeza gentil. — Quem perdeu nessa história toda foi o babaca — disse por fim. — Você merece alguém à altura. Alguém que veja o que tem nas mãos e não jogue fora. Enxuguei os olhos e sorri, fraca. — Obrigada. E desculpa o desabafo. — Não se desculpe por ser honesta — ele respondeu. Bebemos mais. O tempo ficou suspenso naquele quarto de hotel, onde só o som da chuva persistia do lado de fora. A dor dentro de mim era intensa, mas, de alguma forma, dividida com ele, parecia mais suportável. Num momento, nossos olhares se encontraram. E não desviaram. Ele se inclinou devagar. Eu podia ter parado. Podia ter dito que não era o momento. Mas, algo em mim queria esquecer. Queria sentir. Quando nossos lábios se tocaram, foi como se tudo dentro de mim explodisse — o luto, a raiva, a carência, o desejo. Ele me puxou para mais perto com firmeza e fome. Meu corpo respondeu sem hesitar. A urgência nos guiou. Beijos quentes, mãos explorando pele como se buscassem abrigo. Nos despimos entre toques intensos, quase desesperados. Como dois estranhos tentando apagar suas dores com o calor do outro. Naquela cama desconhecida, sob lençóis caros e almas remendadas, eu deixei de ser apenas traída. Fui mulher. Desejada. Escolhida — nem que fosse só por uma noite. Acordei no meio da madrugada com o quarto mergulhado em penumbra e o som constante da chuva ainda tocando as janelas. Por um instante, não me lembrava onde estava, até virar a cabeça.Ele dormia ao meu lado, de lado, com o braço sob a cabeça e o rosto parcialmente coberto pelo lençol branco. A respiração era profunda, serena. E mesmo dormindo, havia algo nele... uma presença sólida, impossível de ignorar.
Não sabíamos o nome um do outro. Ele sequer perguntou o meu, e eu não perguntei o dele.
E talvez tenha sido melhor assim.Não havia promessas ali. Não havia continuidade. Só dois corpos que, por algumas horas, encontraram consolo um no outro.
Sentei-me na beira da cama, respirei fundo, e comecei a recolher minhas roupas espalhadas pelo chão. A blusa ainda estava úmida da chuva. A calcinha enroscada no pé da poltrona. A calça amarrotada no tapete. Nada era elegante, mas tudo fazia sentido naquela noite que escapava entre os dedos.
Vesti-me em silêncio, tentando não fazer barulho. Antes de sair, olhei para ele uma última vez. Parte de mim queria memorizar aquele rosto, como se fosse alguma coisa que eu pudesse levar comigo. Mas a maior parte de mim só queria ir embora.
Toquei a campainha do apartamento de Olívia com as mãos trêmulas, o cabelo grudado na testa e os olhos ainda ardendo. Já passava das duas da manhã.
Ela abriu com a cara mais amassada que eu já vi na vida.
— Isa...? — piscou, confusa. — O que aconteceu? Você tá... você tá encharcada.
Tentei sorrir.
— Eu nem saberia por onde começar. Mas... preciso de um lugar pra ficar hoje.Olívia abriu espaço sem dizer mais nada e me puxou pra dentro. A luz baixa da sala me pareceu mais acolhedora do que qualquer palavra naquele momento.
— Henrique aprontou alguma coisa, não aprontou? — ela perguntou, já indo buscar uma toalha. — Porque eu vou te dizer...
— Você tava certa sobre ele — interrompi, sentando no sofá. — Mas agora... só preciso dormir. Eu preciso estar no trabalho em algumas horas.
Ela me lançou um olhar comprido, como se soubesse que eu estava só arranhando a superfície.
— Tá. Mas... antes de você dormir preciso perguntar: você vai conhecer o novo CEO?
— Não sei. Tá rolando muito burburinho nos corredores. Parece que ninguém esperava que o presidente tivesse mais de um filho.
— Um deles pode ser adotado — disse Olívia, meio rindo, especulando. — Ou é segredo de novela.
— Pode ser — murmurei. Ela voltou com um moletom limpo e uma calça larga, além de uma toalha grande. Deois de desapareceu para o quarto. O sono não veio. Em vez disso, vieram as lembranças. A imagem de Henrique. A sensação de ter sido traída, manipulada, descartada. Tudo ainda tão fresco, latejando dentro de mim. Mas, depois vieram outras lembranças. A pele quente. Os olhos cinzentos. A maneira como ele me segurou. A naturalidade com que me ouviu. E, contra todas as expectativas, a primeira transa com um estranho na minha vida foi... boa. Na verdade, foi melhor do que boa. Foi libertadora. Talvez eu devesse repetir a dose. Ou talvez não. Talvez só tenha sido o jeito que a vida encontrou de me lembrar que eu ainda era capaz de sentir alguma coisa. Quando percebi, o céu começava a clarear. Levantei com o corpo moído e a alma em carne viva. Fui ao banheiro, lavei o rosto, vesti a roupa da noite passada e deixei um bilhete para Olívia sobre a mesa: "Obrigada. Volto mais tarde.” Fui para o apartamento, que estava vazio. Foi um alivio. Peguei uma muda de roupa e fui direto pro banho. Deixei a água quente cair nas costas, tentando lavar junto tudo o que ainda pesava. Mas tem dores que nem água escorre Eu me arrumei para o trabalho, como de costume. E torci para que Henrique não voltasse antes de eu sair. *** O escritório estava em clima de expectativa. Uma reunião de emergência havia sido convocada. O novo CEO e Herdeiro, aquele de quem todos falavam em sussurros, se apresentaria oficialmente. Sentei-me na mesa de reunião com outros colegas. Todos cochichavam. — Você viu a matéria? — Dizem que é bonito. E jovem. — Ninguém nem sabia que o presidente tinha outro filho... Tudo o que se sabia sobre o novo CEO é que ele viria dos Estados Unidos para ocupar o cargo do falecido herdeiro, Agusto Montenegro, que era meu chefe há mais de quatro anos. A morte de Augusto pegou a todos de surpresa. Disseram que foi um acidente trágico de carro. Eu poderia ter ido ao funeral. E pensar no passei por não ter ido, me rendeu no maior arrependimento da minha vida. Na verdade, eu não fui porque não quis. Não só por ser o aniversário do pilantra que me traiu. Mas, porque Augusto não era um chefe muito simpático. Eu diria que era um demônio em forma de gente, e só o aguentei porque o salário alto compensava toda a raiva que eu acumulava, com as horas extras de trabalho, e aos finais de semana sem folga, que eram desgastantes. Enquanto estávamos em volta da mesa de reunião, uns olhavam para os outros, e os cochichos não paravam. Eram muitas as teorias malucas, e acreditava que a pior era a de que novo CEO era filho secreto do presidente. Eu não conseguia acreditar nisso, porque Augusto nunca falou sobre ele. Eu cuidava da sua agenda, sabia tudo sobre sua rotina, e em nenhum momento ele mencionou que tinha um irmão. Ouvimos passos vindo do corredor e todos nós ficamos em silêncio. Alguns minutos depois, a porta se abriu. E foi como se o tempo desacelerasse, em câmera lenta. Ele entrou, e meu estômago deu um leve giro.