Gabriel permaneceu por mais alguns minutos sentado no chão, o olhar fixo no teto descascado do apartamento. O som da chuva lá fora dava uma falsa sensação de tranquilidade, mas por dentro, ele estava em guerra.
Levantou com os músculos rígidos, foi até a pequena prateleira onde guardava um caderno velho. Abriu uma nova página e começou a anotar. Datas, horários, pequenos detalhes da rotina de Lara, da amiga e de Leônidas. Ele sempre fazia isso. Era a forma que tinha de manter o controle… ou pelo menos de fingir que tinha algum.
“Nome da amiga: desconhecido. Frequência de visita: esporádica. Relação emocional: alta.”
Fechou o caderno e guardou de volta na mochila.
Olhou pela janela mais uma vez.
O quarto de Lara agora estava apagado. As luzes da mansão seguiam acesas em outros cômodos, mas ela tinha sumido de vista.
Gabriel encostou a testa no vidro frio da janela.
Por um segundo, se permitiu imaginar como seria atravessar a rua. Entrar pela porta da frente. Tocar a campainha. Dizer um simples “Oi” para ela.
Ridículo.
A realidade era outra.
No mundo real, ele era o homem invisível. O vulto atrás da mira. O perigo que ela nunca saberia que existia.
Voltou até a mesa improvisada no canto do apartamento, onde a Dragunov estava desmontada, peça por peça, como um quebra-cabeça macabro.
Passou um pano nas partes metálicas com cuidado, num gesto quase carinhoso. Fazer a manutenção da arma sempre o ajudava a pensar.
E ele precisava pensar.
Porque, do jeito que as coisas estavam indo, não era só o cliente que ia começar a fazer perguntas.
Ele próprio… já começava a se perguntar o que diabos estava fazendo.
Por fim, antes de se deitar no colchão jogado no chão, pegou o celular uma última vez e digitou uma anotação rápida pra si mesmo:
"Observar a amiga. Descobrir nome. Possível ponto de fraqueza."
Bloqueou a tela, largou o telefone no chão ao lado da arma… e fechou os olhos.
Mas naquela noite, como nas anteriores… dormir seria impossível.
O sono veio em pedaços. Gabriel acordava a cada barulho vindo da rua: o motor de um carro passando devagar demais, uma sirene distante, o arrastar de um carrinho de lixo na calçada. Cada som ativava o instinto que anos de profissão tinham enraizado nele.
Por volta das três da manhã, ele se levantou.
Foi até a janela de novo.
O prédio da frente estava escuro, quase todas as luzes apagadas. Mas a mansão… a mansão parecia nunca dormir. As luzes do escritório de Leônidas continuavam acesas. Um dos seguranças andava de um lado pro outro no jardim, protegendo o homem que, segundo os planos originais, já deveria estar morto.
Gabriel apoiou os cotovelos no parapeito da janela, encarando o nada por alguns minutos.
Era uma ironia que só agora, depois de tantos anos de contratos bem-sucedidos, ele começasse a falhar. E o motivo? Uma garota que nem sabia da existência dele. Uma garota que dançava no quarto sem saber que havia um assassino vigiando cada movimento dela.
Ele passou a mão pelo rosto, cansado.
A cabeça pesava, mas o peito… o peito parecia pior.
Era uma mistura de frustração, confusão e um sentimento que ele não tinha nomeado ainda. Não queria nomear. Era mais fácil fingir que ainda era o mesmo homem de sempre. O mesmo soldado pago pra puxar o gatilho e desaparecer antes que alguém notasse.
Mas aquilo estava acabando. Ele sabia.
Logo o cliente apareceria pessoalmente, ou mandaria outro profissional terminar o serviço.
E aí? O que ele faria?
Protegeria Lara? Fugiria? Acabaria com tudo antes que a situação fugisse do controle?
Gabriel fechou os olhos por um segundo.
Visualizou o rosto dela. O jeito como ela se jogava na cama, os olhos brilhando quando ria da amiga, a forma como caminhava descalça pelo quarto, distraída, livre… tão diferente de tudo que ele conhecia.
Era errado.
Tudo era errado.
Mas, naquele momento, errado era a única coisa que fazia sentido.
Pegou o caderno de anotações de novo. Abriu numa página em branco e escreveu uma única frase:
“Me pergunto se ela também se sente presa.”
Fechou o caderno, deitou de novo, mas dessa vez, antes de fechar os olhos, fez uma promessa silenciosa pra si mesmo:
No próximo encontro delas… ele descobriria o nome da amiga.
E talvez… só talvez… desse um jeito de ver Lara de perto.
Pela primeira vez.
***
Ainda deitado, Gabriel virou o rosto para o lado, encarando a parede cheia de rachaduras ao seu alcance. Por um instante, pensou em como seria simples abandonar tudo aquilo. Largar o rifle, apagar o número do cliente e sumir da cidade.
Ele já tinha feito isso antes. Sumido de lugares. De pessoas. De contratos malditos.
Mas agora era diferente.
Não era só uma missão mal planejada. Não era só um alvo complicado.
Era ela.
O jeito como Lara puxava o cabelo pra trás quando estava irritada. Como mordia o canto da unha quando pensava. Como dançava sem se preocupar com quem estava olhando. Como desafiava o próprio pai sem medo das consequências.
Gabriel riu, sozinho, com uma mistura de ironia e desespero.
“Você tá mesmo ferrado.”
Levantou de novo. Pegou o binóculo, mesmo com o quarto dela já escuro, como se em algum milagre ela ainda aparecesse por um segundo. Mas não apareceu.
Então ele desviou o foco, pela primeira vez em dias, para os arredores da casa. Mapeou as entradas de serviço, os becos laterais, os acessos de emergência. Já era hora de planejar uma aproximação. Algo discreto. Só pra sentir o terreno.
Se aproximar da casa de um milionário cercado de seguranças não era tarefa fácil. Mas Gabriel era especialista nisso.
E no fundo… ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, ia cruzar fisicamente com Lara. A dúvida era: ele conseguiria olhar nos olhos dela… e continuar sendo o mesmo homem?
Voltou ao caderno e começou a rabiscar mapas mentais. Possíveis rotas. Horários em que a segurança ficava mais relaxada. As áreas cegas onde as câmeras de vigilância não alcançavam.
Cada traço feito no papel era uma mistura de planejamento… e de desculpa. Uma forma de se convencer de que aquilo ainda era trabalho. Que ainda tinha algum controle.
No final da página, rabiscou uma última anotação, desta vez com letras maiores:
“Ela não pode me ver. Não ainda.”
Fechou o caderno com força.
Amanhã, ele daria o primeiro passo.
Mesmo que fosse o começo de um caminho sem volta.