Gabriel desceu os degraus do prédio abandonado com passos lentos, quase como se cada degrau fosse um convite ao erro. O cheiro de mofo misturado com poeira impregnava as paredes descascadas. Lá embaixo, a porta de ferro rangeu quando ele a empurrou para sair.
O ar da manhã estava úmido, ainda carregando o cheiro da chuva da noite anterior.
Ele puxou o boné para baixo, ajeitou a gola da jaqueta e cruzou a rua como um fantasma. Sabia exatamente onde pisar, como andar, como se misturar. Ninguém olhava duas vezes para um homem com aparência cansada, de mãos nos bolsos e olhar perdido.
Seguiu até a banca de jornal da esquina, o ponto onde teria uma visão discreta da entrada da mansão.
Esperou.
O movimento na rua começava a aumentar. Carros, motos, pessoas indo trabalhar. Gabriel manteve a atenção dividida: uma parte da mente observava os seguranças que circulavam pela frente da casa de Leônidas; a outra… só esperava por ela.
E ela veio.
Por volta das oito, Lara saiu pelos portões da mansão.
Sozinha.
Usava um vestido leve, casaco por cima e os fones de ouvido pendurados no pescoço. Carregava uma bolsa grande, cheia de cadernos e um estojo de tintas. Gabriel reconheceu de longe. Ela provavelmente estava indo ao ateliê onde dava aulas de pintura para crianças.
Ele sabia desse detalhe… porque já tinha seguido os passos dela outras vezes. Sem se aproximar. Só observando de longe.
Mas hoje… seria diferente.
Gabriel guardou o jornal falso que usava para disfarçar e começou a andar atrás dela, mantendo sempre dois carros de distância. Não era difícil. Lara caminhava distraída, os olhos fixos no celular de vez em quando, sem desconfiar de nada.
Ela seguiu até a estação de metrô.
Gabriel hesitou por um segundo antes de entrar também. Mas logo a decisão já estava feita. Desceu os degraus, comprou um bilhete, passou pela catraca e se manteve nas sombras, sempre um passo atrás.
No vagão, ela ficou de pé, encostada na porta.
Gabriel se posicionou no lado oposto, entre dois homens engravatados, fingindo olhar as notificações do próprio celular enquanto, na verdade, acompanhava cada pequeno movimento dela.
Quando o metrô balançava, ela segurava na barra de ferro com uma das mãos, os cabelos balançando de leve com o movimento.
Ele se pegou pensando em como a pele dela parecia macia… e odiou esse pensamento.
"Concentre-se", repetiu pra si mesmo.
Na estação seguinte, Lara desembarcou. Gabriel foi junto.
Seguiu até uma rua movimentada, cheia de cafés pequenos e galerias de arte. Ela entrou em uma cafeteria de esquina, daquelas com mesas na calçada e cheiro de pão fresco no ar.
Gabriel ficou do outro lado da rua, encostado num poste, observando através da vidraça.
Ela pediu algo no balcão, sorriu para a atendente e escolheu uma mesa no canto, perto da janela.
Por um instante, Gabriel pensou em atravessar a rua. Entrar. Pedir um café qualquer. Sentar perto. Dizer um “bom dia” como se fosse mais um cliente qualquer.
Mas o medo de quebrar o equilíbrio o travou.
Ainda não.
Ainda era cedo.
Então ficou ali, observando.
Ela pegou um caderno da bolsa e começou a desenhar. Rabiscos rápidos, como sempre fazia quando estava sozinha.
O coração de Gabriel batia forte. Mais do que deveria. Mais do que era aceitável pra alguém como ele.
— Você está perdido — ele murmurou, quase como se estivesse falando pra outro homem, e não pra si mesmo.
Ficou ali por quase meia hora.
Até que… a amiga apareceu.
A mesma de antes. A morena de sorriso fácil.
Ela se aproximou por trás, abraçou Lara de surpresa e se sentou de frente pra ela.
As duas começaram a rir alto, chamando a atenção de quem passava na calçada.
Gabriel observou cada detalhe. O jeito como Lara jogava a cabeça pra trás quando ria. Como mexia no canudo do copo de suco com distração. Como batia levemente o pé no chão enquanto ouvia a amiga falar.
A cena era simples.
Cotidiana.
Mas, pra Gabriel… parecia o tipo de vida que ele nunca teve.
Ou nunca soube como ter.
As duas ficaram conversando por mais alguns minutos.
Até que, num impulso que ele mesmo não conseguiu controlar, Gabriel atravessou a rua.
Andou com passos firmes.
Parou na vitrine da cafeteria, fingindo olhar os doces expostos, mas, na verdade… o olhar dele estava nela.
Lara não percebeu.
A amiga, por outro lado… sim.
Os olhos da morena cruzaram com os dele por um segundo. Rápido. Curioso.
Gabriel desviou imediatamente o olhar, virou-se e começou a caminhar de volta pela calçada, como se nunca tivesse parado ali.
O coração dele disparado.
“Primeiro contato”, pensou.
Curto. Rápido. Discreto.
Mas o suficiente pra marcar o início de algo que ele ainda não sabia nomear.
Enquanto caminhava de volta pro prédio abandonado, uma frase ecoava na mente dele, sem pedir permissão:
"É só questão de tempo."
E ele sabia que era.
Mas mesmo enquanto se afastava, a memória daquele olhar cruzado com a amiga de Lara não saía da cabeça dele.
Foi um segundo. Talvez menos. Mas, naquela fração de tempo, Gabriel viu algo nos olhos dela. Não foi medo. Nem desconfiança imediata. Mas uma faísca de atenção. Um olhar que dizia: “Te vi.”
E isso, para alguém como ele, era o suficiente para acender o alerta interno.
Chegou na esquina, virou rápido para um beco lateral e ficou ali, encostado contra a parede de tijolos úmidos, respirando fundo.
Deixou o capuz da jaqueta cobrir melhor o rosto, conferiu os arredores, certificando-se de que ninguém o seguia.
Depois, sem muita escolha, pegou o celular e fez a primeira coisa estúpida do dia: abriu o aplicativo de localização de cafés nas redondezas e procurou fotos internas daquele lugar onde ela estava.
A sorte – ou o azar – foi que encontrou algumas fotos recentes postadas por clientes. Em uma delas, lá no fundo, dava pra ver a amiga de Lara sorrindo, sentada exatamente na mesma mesa onde as duas estavam naquele momento.
Gabriel ampliou a imagem.
Passou os olhos rápidos pelo nome do usuário que postou.
“@marisvasconcelos”
Ele sorriu de canto.
Finalmente… um nome.
Marina.
Agora ele tinha uma peça nova no tabuleiro.
Salvou mentalmente aquela informação. Poderia usar depois.
Ainda com o coração acelerado, Gabriel continuou andando pela cidade, mas sua mente permanecia presa naquela cafeteria, naquela mesa perto da janela, naquela troca de olhares que, por mais breve que tivesse sido… significava que a linha entre ele e elas estava começando a se borrar.
Passou o restante do dia rondando os quarteirões próximos, observando de longe.
Viu quando Lara e Marina deixaram a cafeteria horas depois. As duas caminharam juntas até a estação, rindo, empurrando uma à outra como adolescentes que não têm noção de perigo.
Gabriel manteve distância.
Seguiu discretamente, aproveitando a multidão nas calçadas.
Quando as duas entraram no metrô, ele ficou de fora dessa vez.
Sabia que estava esticando demais a sorte.
Voltou devagar para o prédio abandonado.
Subiu as escadas em silêncio.
Montou o rifle de novo… mas dessa vez, ao mirar pela lente, não foi no escritório de Leônidas.
Foi na janela de Lara.
O quarto estava vazio.
Mas, mesmo assim, ele ficou ali… só olhando.
Como sempre.
Como se aquilo fosse o único lugar onde ele ainda soubesse existir.
Antes de deitar, abriu o caderno e escreveu na nova página:
“Nome da amiga: Marina Vasconcelos.”
E abaixo disso:
“Ela me viu.”
Guardou o caderno, apagou a luz… e, pela primeira vez em semanas, dormiu com um sorriso discreto nos lábios.
O jogo tinha começado de verdade.