Capítulo 6: Seguir de Perto

A cidade parecia mais clara no dia seguinte, como se o mundo tivesse passado por uma lavagem silenciosa enquanto todos dormiam. Mas Gabriel não tinha dormido.

Passou a noite inteira revivendo aquele segundo.

O estojo caindo.

A mão dele alcançando.

O olhar dela.

O sorriso.

Tão leve. Tão simples. Mas foi como um terremoto particular.

Na manhã seguinte, ele já estava na rua antes das oito. O rifle ficara no apartamento. Pela primeira vez em anos, ele saiu para uma missão sem estar armado com mais do que uma pistola oculta e a própria ansiedade.

Passou pelo mesmo café onde Marina costumava ir, mas ela não estava lá.

Então seguiu para a galeria. A agenda dela indicava que trabalhava aos sábados de manhã.

Gabriel se posicionou do outro lado da rua, num ponto onde conseguia ver a vitrine da galeria e, ao mesmo tempo, o caminho pelo qual Lara viria — se viesse.

E ela veio.

Por volta das nove, Lara apareceu no quarteirão com um andar calmo, como se fosse dona do próprio tempo. Usava uma saia longa e camiseta branca com um desenho de pássaros. O cabelo estava preso num coque bagunçado, com alguns fios caindo soltos.

Gabriel precisou de esforço pra manter os pés firmes no chão.

Ela entrou na galeria, e minutos depois, Marina a recebeu com um abraço exagerado e um café na mão. As duas desapareceram nos fundos da loja.

Gabriel cruzou a rua.

Empurrou a porta de vidro da galeria.

Um sininho tocou acima da cabeça.

Marina apareceu primeiro, com um olhar curioso. O tipo de expressão profissional que se força a sorrir até descobrir se o cliente é real ou só um maluco.

— Bom dia — ela disse. — Posso te ajudar?

Gabriel passou os olhos pelas paredes cobertas de quadros abstratos.

— Tô… procurando algo pra um apartamento novo — disse ele, com a voz arrastada de propósito, como se fosse um homem qualquer, cansado, talvez recém-separado. — Algo… tranquilo. Silencioso.

Marina deu um sorriso simpático.

— Temos bastante coisa com esse clima. Minimalismo moderno, expressão introspectiva. É pra uma sala?

Ele assentiu.

— Perto de uma janela.

Ela o guiou por entre as obras. Gabriel fingia observar cada quadro com atenção, mas sua mente estava focada em outra coisa: onde estava Lara? Ela ainda não tinha aparecido. Talvez estivesse nos fundos. Talvez tivesse saído por outra porta. Talvez...

E então, ela surgiu.

Com uma pasta de desenhos na mão, Lara entrou na sala principal da galeria, falando com Marina sem perceber a presença dele.

— Mari, aquele suporte que você encomendou chegou? — perguntou ela, distraída, sem levantar os olhos.

Marina ia responder, mas parou, notando que Lara ainda não havia visto o visitante.

Gabriel permaneceu parado, de costas para ela, fingindo estar absorto num quadro grande em tons de cinza e vermelho.

Lara parou no meio da fala quando o viu.

Gabriel não virou imediatamente, mas sentiu o ar mudar atrás de si. Um silêncio estranho, como se o ambiente todo parasse para escutar o que viria a seguir.

— Oi — ela disse.

A voz era gentil, meio confusa.

Gabriel se virou devagar.

Ela o reconheceu.

— Você… de ontem, né?

Ele sorriu de leve, discreto, como quem está com vergonha de ter sido notado.

— É… a coincidência me pegou — disse.

Marina olhou de uma para o outro com um brilho curioso nos olhos, mas disfarçou bem. Caminhou até o balcão, deixando os dois sozinhos.

Lara ajeitou o cabelo atrás da orelha, visivelmente desconfortável.

— Obrigada por ontem. O estojo… — ela sorriu — teria sido atropelado em segundos.

Gabriel deu de ombros.

— Eu sou bom com reflexos.

Ela riu. Uma risada leve, tímida, mas honesta.

— Gabriel — ele disse, estendendo a mão.

Ela hesitou um pouco. Depois apertou.

— Lara.

O toque foi rápido. Mas firme.

— Você pinta? — ele perguntou, apontando com o queixo para a pasta dela.

— Tento — ela respondeu. — É mais terapia do que arte.

— Às vezes as duas coisas são a mesma.

Ela sorriu de novo.

Marina voltou, interrompendo o momento.

— Lara, o suporte tá no depósito. Quer me ajudar a pegar?

Lara assentiu, mas lançou um último olhar para Gabriel antes de desaparecer para os fundos.

Ele respirou fundo.

Conseguiu.

Primeiro contato real. Nome. Voz. Sorriso. Toque.

Cada peça se encaixando lentamente, como se o mundo estivesse permitindo que aquela loucura avançasse.

Marina voltou logo depois, sozinha.

— Gostou de algum? — perguntou.

Gabriel apontou para um quadro que nem tinha prestado atenção direito.

— Aquele ali. Pode embrulhar?

Ela ergueu uma sobrancelha, surpresa com a decisão rápida.

— Claro. Pagamento em cartão?

Ele assentiu, puxando uma carteira com um cartão comum.

Enquanto ela passava a compra, disse:

— Coincidência encontrar a Lara aqui. Ela parece… gente boa.

Marina sorriu com um ar desconfiado.

— É. Ela é.

Gabriel não insistiu.

Pagou. Pegou o quadro. Agradeceu com um aceno e saiu.

Do lado de fora, a luz estava mais forte. O sol já estava alto no céu.

Ele andou alguns quarteirões antes de parar no mesmo ponto de ônibus de sempre. Encostou o quadro no banco e se sentou, olhando para as mãos.

Ainda tremiam um pouco.

Mas era uma boa tremedeira.

Um sinal de que a vida dele — toda errada, toda torta — tinha cruzado uma linha invisível.

E agora, tudo era possível.

Gabriel ficou ali no ponto de ônibus por mais alguns minutos. O quadro no colo, ainda embrulhado, parecia estranho em suas mãos calejadas. Ele não tinha ideia do que tinha comprado. Apenas apontou.

Mas, pela primeira vez em anos, não era o produto que importava.

Era o gesto.

Uma desculpa para estar ali. Um motivo para ser notado. Um passo em direção ao que ele não conseguia mais fingir que não queria.

Lara.

Com o quadro embaixo do braço, voltou a pé para o prédio abandonado onde morava. Subiu os degraus devagar, como se cada um carregasse o peso de tudo que tinha feito nos últimos dias — e tudo o que ainda não sabia como lidar.

Quando chegou no apartamento, jogou a mochila num canto, deixou o quadro ainda embrulhado em cima da mesa improvisada e foi direto para a janela.

Pegou os binóculos.

O quarto dela estava vazio, as janelas escancaradas, cortinas dançando com o vento.

Ele observou mesmo assim.

Olhava como quem procura algo que não sabia nomear.

Depois de longos minutos, largou os binóculos com um suspiro e voltou para a mesa.

Abriu o embrulho.

O quadro era caótico. Manchas em tons de azul escuro e cinza com linhas brancas feitas com espátula. Parecia uma tempestade num quarto fechado. Um grito preso numa moldura.

Gabriel encarou aquilo por muito tempo.

Sem entender, mas se sentindo profundamente tocado.

Foi quando seu celular vibrou.

O número do contratante.

Sem nome. Sem foto. Só aquele mesmo código de país distante e a aura de cobrança silenciosa.

Gabriel atendeu.

— Estamos no limite. — A voz era fria, direta. — Era pra esse homem estar morto há uma semana. Tem gente começando a desconfiar.

Silêncio.

Gabriel não respondeu.

— Você ainda está no controle da situação? — insistiu a voz.

— Sim — ele disse, a voz rouca.

— Então prove.

A ligação caiu.

Gabriel encarou o celular como se fosse um inimigo antigo. Um lembrete de quem ele era… e de quem ainda tentava não ser.

Mas a verdade era clara: o relógio estava rodando.

E Lara não fazia ideia de que estava no centro de tudo isso.

Levantou-se com o quadro nas mãos e, num impulso, pendurou-o na parede do quarto, bem acima da mochila onde guardava a SVD Dragunov desmontada.

Duas imagens: uma arma feita para tirar vidas. Um quadro feito para expressar uma.

Ele ficou encarando aquilo como se fosse um altar.

E, naquele momento, fez uma promessa silenciosa:

Não importa o que aconteça… ela não vai morrer por causa disso.

Depois se sentou, abriu o caderno de anotações e começou uma nova página com uma única frase no topo:

"Lara: já sabe que existo."

Abaixo, desenhou o rosto dela como conseguia lembrar. Linhas suaves, olhos atentos, sorriso contido. Nada profissional. Mas sincero.

E antes de dormir — se é que se pode chamar aquilo de sono — ficou pensando no toque da mão dela, mesmo que breve.

Como algo tão pequeno podia ser tão marcante?

Como alguém que não sabia nada sobre ele podia, só com um sorriso, fazer o mundo inteiro parecer menos pesado?

No silêncio da madrugada, enquanto a cidade se apagava pouco a pouco, Gabriel entendeu que o trabalho já não era mais o foco.

A missão mudara de nome.

Agora, o que importava era outra coisa:

Ficar perto dela.

A qualquer custo.

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