Capítulo 2: Ela Dança Sozinha

A chuva começou leve, mas logo desabou com força, castigando os vidros da janela do apartamento de Gabriel. Do outro lado da rua, a mansão de Leônidas parecia intocável, iluminada por luzes douradas que desenhavam sombras nas paredes de concreto e vidro.

Gabriel ajustou a luneta da Dragunov mais uma vez, ignorando a umidade que começava a se acumular no batente da janela quebrada. Estava ali há horas, como sempre. Vigiando. Esperando. Pensando.

Só que, naquela noite, a espera tinha gosto de ansiedade.

Lara entrou no quarto pouco depois das 21h.

Gabriel já conhecia cada detalhe da rotina dela. Sabia a hora que ela desligava as luzes do corredor, quando trancava a porta, o momento exato em que jogava o celular na cama antes de tirar os sapatos.

Mas, naquela noite, algo estava diferente.

Ela parecia… leve.

Soltou os cabelos, aumentou o volume de alguma música que Gabriel não conseguia ouvir, e começou a dançar. Sozinha, no meio do quarto, com os olhos fechados e um sorriso discreto no rosto.

Não era uma dança coreografada. Não era pra ninguém assistir.

Era pra ela mesma.

Uma liberdade íntima. Quase infantil. Como se estivesse esquecendo o mundo lá fora.

Gabriel encostou o olho na lente da luneta e ficou imóvel.

Observou cada movimento: os giros desajeitados, os passos que pareciam inventados na hora, os braços erguidos como quem abraça o próprio corpo.

Se fosse qualquer outro dia, qualquer outro alvo, ele teria desviado a mira. Teria se forçado a olhar apenas para Leônidas.

Mas ali… naquela noite… ele ficou.

Por minutos inteiros.

Só assistindo.

O dedo dele estava onde sempre ficava: no gatilho. Mas o resto… o resto estava em outro lugar.

— Você tá ficando louco… — ele murmurou, afastando-se da arma e passando a mão no cabelo.

Levou a cerveja quente até a boca, mas largou antes mesmo de engolir. O gosto parecia pior do que nas noites anteriores.

Pegou o celular.

Abriu o navegador. Pesquisou o nome dela.

“Lara Tavares”

As primeiras fotos eram de eventos sociais. Festas de gala ao lado do pai. Sorrisos forçados. Vestidos caros. Mas não era aquela garota que ele via pela lente. Não era a garota que dançava de camiseta larga num quarto bagunçado.

Desceu mais um pouco a página.

Uma matéria sobre uma exposição de arte na qual ela tinha participado meses antes. Algumas fotos dela pintando num galpão. Sujeira de tinta nas mãos. Riso espontâneo.

Aquilo era mais próximo.

Mais real.

Gabriel largou o celular de lado e voltou pra janela.

A dança tinha terminado.

Lara agora estava deitada na cama, com o cabelo espalhado no travesseiro, encarando o teto, como se estivesse cansada do mundo.

A tempestade do lado de fora ficava mais forte, e a luz do quarto dela oscilou por alguns segundos antes de voltar.

Gabriel respirou fundo.

Ele sabia que aquilo não podia continuar. Já estava indo longe demais. O cliente ia começar a cobrar.

Leônidas ainda era o alvo.

O motivo de tudo aquilo.

Pegou a Dragunov novamente e mirou direto na varanda, onde o milionário costumava aparecer todas as noites por volta das 22h com um copo de uísque.

Mas hoje… ele estava atrasado.

Gabriel verificou o horário. Já passava da hora.

— Onde você tá, velho maldito… — sussurrou, ajustando o foco.

De repente, a porta do quarto de Lara se abriu.

Leônidas entrou.

Sem gravata, com a camisa meio aberta e o copo na mão.

Lara rolou os olhos, deu um sorriso preguiçoso e fez sinal pra que ele saísse.

Gabriel acompanhou tudo pela luneta.

O diálogo era mudo para ele, mas os gestos falavam. Leônidas riu de algo, apontou pra ela como quem faz uma piada boba, depois saiu, fechando a porta.

Gabriel permaneceu imóvel.

Por um instante, ficou com o dedo firme no gatilho.

A mira seguiu o milionário até o corredor, depois até a sala.

Um disparo. Era tudo o que precisava.

Mas não atirou.

De novo.

Em vez disso, abaixou a arma.

Jogou o corpo pra trás, respirando como se tivesse acabado de correr uma maratona.

Sua cabeça martelava. Era como se estivesse carregando um peso invisível nas costas. Um fardo que ele mesmo tinha escolhido, sem perceber.

Ele precisava se afastar.

Talvez amanhã.

Talvez nunca.

Olhou para a janela dela uma última vez antes de deixar a arma desmontada no chão.

Amanhã ele decidia o que fazer.

Por enquanto… ela continuava ali.

Dançando sozinha na cabeça dele.

***

Gabriel montou o tripé com a precisão de sempre, mas já fazia tempo que o ritual tinha perdido o peso profissional. O rifle estava ali, a mira calibrada, o alvo ainda vivo… mas, naquela manhã, o foco dele era outro.

Lara.

Ela tinha acordado cedo, coisa rara. As cortinas foram abertas antes das sete, e ela já estava de pé, mexendo no cabelo com pressa, como quem tinha algo marcado. Gabriel estranhou. Pegou os binóculos menores para ter uma visão mais ampla.

Ela trocou de roupa três vezes. Jeans. Depois vestido. Depois voltou pro jeans. Por fim, saiu do quarto carregando uma bolsa grande.

“Dia de sair”, pensou Gabriel.

Ele largou o rifle por um instante e pegou o celular. Abriu o mapa da região. Conhecia os cafés mais próximos da mansão, os parques, os lugares que ela costumava frequentar. Talvez fosse um bom momento pra segui-la de perto… pela primeira vez.

Mas antes mesmo de decidir, ela voltou.

A porta do quarto se abriu de novo, e Lara entrou, acompanhada de outra garota.

Gabriel aproximou a lente, curioso.

A amiga era morena, cabelo liso até a metade das costas, com um casaco de couro e um sorriso fácil. O tipo de pessoa que dominava o ambiente sem esforço. As duas se jogaram na cama, rindo de alguma piada que só elas entendiam. Gabriel assistiu o momento como um intruso, mas incapaz de olhar pra outro lugar.

Por um instante, Lara pegou o celular e virou a tela para a amiga, mostrando alguma mensagem.

A amiga arqueou as sobrancelhas, riu alto e disse algo que fez Lara esconder o rosto no travesseiro.

Gabriel franziu o cenho.

— Quem é você? — sussurrou, falando sozinho.

A nova garota tinha jeito de confidente. Do tipo que sabe todos os segredos. O tipo de pessoa que saberia se Lara estivesse apaixonada. Ou se estivesse com medo de algo. Ou se desconfiasse de alguém.

Um pensamento atravessou a mente dele como uma lâmina: E se Lara já soubesse que estava sendo observada?

A ideia era absurda. Mas, mesmo assim, o desconforto ficou.

As duas continuaram conversando por mais de uma hora. Lara mostrava quadros inacabados, rascunhos de pinturas, enquanto a amiga andava pelo quarto, analisando cada detalhe, mexendo nas coisas com a intimidade de quem já tinha feito aquilo mil vezes.

De repente, o celular de Gabriel vibrou.

Uma nova mensagem.

Número desconhecido:

“O cliente está ficando impaciente. Relatório imediato. Status da execução.”

Gabriel respirou fundo.

Ignorou.

Voltou os olhos pra lente. Agora a amiga de Lara estava sentada no parapeito da janela, olhando pra rua com o que parecia ser tédio. Gabriel, por reflexo, recuou meio passo, ficando fora do ângulo. Mesmo tão longe, seu instinto de sobrevivência era automático.

Quando voltou pra luneta, Lara estava rindo de novo.

A amiga jogou um travesseiro nela, e as duas começaram uma pequena guerra de almofadas, leve e despretensiosa. A cena arrancou de Gabriel um sorriso involuntário.

Mas o sorriso sumiu rápido.

Leônidas entrou no quarto, mais uma vez.

Desta vez com expressão irritada. Os gestos eram secos, curtos. Ele apontou pra amiga de Lara como se estivesse ordenando que ela fosse embora.

Gabriel apertou o zoom.

Não conseguiu ouvir, mas o tom de Leônidas era claro. Lara cruzou os braços, respondeu de volta com uma expressão teimosa, mas a amiga já tinha se levantado, pegado a bolsa e saído do quarto.

Leônidas deu uma última bronca e também saiu, batendo a porta com força.

Lara ficou ali, sozinha, sentada no canto da cama, com os olhos baixos, os ombros caídos. Por longos minutos, ela não se mexeu.

Gabriel apertou os punhos.

Era estranho. Aquele homem que ele deveria matar… estava ali, gritando com ela. Intimidando ela. Humilhando ela dentro da própria casa.

Era como se o destino estivesse provocando.

Um alvo fácil.

Mas o dedo de Gabriel… mais uma vez… continuava longe do gatilho.

Ele passou a tarde naquela posição. Esperando. Observando.

Anotou mentalmente cada detalhe da nova personagem na história: a amiga de Lara. A possível ponte entre os dois mundos.

Quando o sol começou a cair, Lara se levantou, pegou um casaco e saiu do quarto. Provavelmente pra jantar com o pai, ou se esconder em algum canto da mansão, como fazia nos últimos dias.

Gabriel desmontou o rifle com movimentos lentos, quase meditativos.

Guardou cada peça com cuidado, como se o metal tivesse mais valor agora do que antes.

Pegou o celular e, pela primeira vez em dias, respondeu à mensagem do cliente.

“Status: Em andamento. Alvo monitorado de perto. Aguardando melhor oportunidade.”

A mentira saiu fácil.

Mas ele sabia que estava se enterrando cada vez mais fundo.

O problema é que… no fundo… ele nem se importava mais.

Lara tinha se tornado a única coisa real no meio daquele jogo de morte.

E Gabriel… já tinha passado do ponto de recuo.

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