Início / Romance / Amor inacabado / capitulo 2- Redemoinho com cheiro de Andiroba
capitulo 2- Redemoinho com cheiro de Andiroba

Ariana passou o resto da manhã encarando a tela do notebook sem realmente enxergar nada. As notificações da agência pipocavam, o roteiro da campanha estava aberto, mas sua mente estava a milhares de quilômetros dali, exatamente onde ela não queria estar.

Carapá.

Só de pensar no nome, algo dentro dela se revirava.

Não era medo.

Não era saudade.

Era… tudo misturado. Um sentimento antigo, quase esquecido, que voltava com a força de uma enchente de rio.

Tentou trabalhar.

Mas as lembranças vinham como flashes.

A rua de barro onde cresceu...

O cheiro forte de andiroba sendo extraída nos fundos das casas...

As tardes na beira do rio, com o pé na água…

E ele.

Sempre ele.

Eduardo correndo na frente dela, virando-se para gritar:

— Anda logo, Ari! Você é muito lenta!

Ela, magrela, tímida, rindo de nervoso enquanto tentava acompanhá-lo.

Piscou forte.

A imagem sumiu.

Ou melhor, se escondeu, como fazia há anos.

Ariana fechou o notebook com força, pensou, preciso correr, se vestiu o foi sentir a brisa da tarde no seu rosto, para acalmar o coração.

assim que voltou para casa depois da corrida. Ainda estava com o corpo quente, o suor secando na pele, quando pegou o celular para ligar para a irmã. Ela precisava ouvir aquela voz. Precisava se ancorar antes que a ideia de voltar ao Amazonas a engolisse inteira.

A chamada abriu de primeira.

— Isso é um milagre. não sou eu te ligando — Julia apareceu na tela, com o cabelo preso de qualquer jeito e o bebê balbuciando no colo.

Ariana sorriu.

Aquele sorriso que só Julia conseguia arrancar dela.

- Onde a minha irmã chique e rica tava que tá suadinha assim? Falou a Júlia com voz de segundas intenções.

— Só fui correr. Precisei clarear a cabeça.

— Deu certo? — Julia arqueou a sobrancelha.

— Não muito — Ariana admitiu.

As duas eram grudadas desde que se entendiam por gente.

A diferença de apenas um ano e dois meses fazia com que parecessem quase gêmeas — confidentes, cúmplices, inseparáveis até a vida as colocar em países diferentes. A Júlia casou com um Canadense e foi viver com ele, quando ela engravidou, a mãe delas Lila, também foi para ajudá-la com o bebê e acabou ficando por lá, gostou do lugar.

— Mamãe tá bem? — Ariana perguntou, enquanto se sentava no sofá do apartamento.

— Tá ótima. Ela mandou beijo. E falou pra você comer direito, porque tá “magrela demais pras fotos do I*******m”.

Ariana riu alto.

Sua mãe sempre fora assim: direta, espirituosa, amorosa…

E uma indígena legítima, nascida e criada em Carapá.

Uma mulher de força silenciosa, que carregava nos olhos a sabedoria da floresta e no corpo as marcas de uma vida simples, mas digna.

— Ela continua implicando com meu peso?

— Com seu peso, com sua vida amorosa, com seu trabalho… a mamãe é um ícone — Julia disse, rindo.

Ariana fechou os olhos por um momento, deixando as memórias chegarem.

Sua mãe, Lila, era o coração da família.

Seu pai, Tadeu, era o aventureiro.

Ele tinha vindo “da cidade grande”, como todos diziam, para negociar óleo de andiroba na região.

Chegou em Carapá com roupas caras, sotaque diferente, modos de quem tinha dinheiro…

Mas caiu de amores pela mulher simples, bonita e arisca que vendia artesanatos na feira.

Foi amor imediato.

Tão forte que Tadeu largou tudo — negócios, conforto, contato com a família — para viver ao lado dela na pequena Carapá.

Eles eram felizes.

De verdade.

Tadeu continuava viajando, levando o óleo de andiroba para outros estados, fechando parcerias, tentando dar um futuro confortável às filhas.

A mãe cuidava do lar, da comunidade, das meninas.

Até que, numa das viagens, quando Ariana tinha 15 anos, aconteceu o acidente. O barco que trazia seu pai de volta virou no meio de uma tempestade repentina.

Ele não resistiu.

A vida delas desmoronou em segundos.

A família ficou sem recursos, sem apoio e com dívidas que Tadeu havia feito para expandir o negócio.

A mãe, desesperada, aceitou a única saída possível: mudar de vida.

E foi assim que uma prima metida a esnobe apareceu com a solução — ou o que parecia uma— Vocês vêm pro Rio — disse a prima, cheia de superioridade. — Consigo trabalho de Babá de uma família amiga, muito boa.

Foi humilhante.

Ariana nunca esqueceu.

Mas a mãe, com lágrimas nos olhos, agarrou a oportunidade. E assim começou o segundo capítulo da vida delas.

— Planeta Terra chamando Ariana Luna! — brincou Júlia, com aquela voz elétrica que parecia sempre prestes a explodir em risada.

Ariana soltou o ar e voltou para o celular

— Desculpa, me distrai..

— Mana. — disse a irmã, imediatamente desconfiada. — Tá com voz de quem viu um espírito. O que tá rolando? Desembucha.

Júlia sempre foi assim: um furacão. Um ano e dois meses mais nova, mas cheia de uma coragem que Ariana invejava desde criança. Bonita, expansiva, faladeira, do tipo que chegava em qualquer lugar e já fazia três amizades. O oposto de Ariana, que preferia observar primeiro e respirar fundo depois.

— Eu… — Ariana engoliu seco. — Vou pra Carapá amanhã.

O silêncio do outro lado foi tão rápido quanto uma explosão.

— O QUÊ? — Júlia praticamente gritou. — Ah não, pera. Isso é sério? Mana, isso é o máximo! Sempre quis voltar lá — disse, a voz vibrando. — A gente cresceu no meio daquele cheiro de andiroba, dos barcos chegando, das festas na praça… Meu Deus, que tudo! Por que tu tá falando desse jeito então? Era pra estar pulando de alegria!

Ariana apertou o celular contra o ouvido. Só ouvir "Carapá" fazia o estômago dela contrair.

Flashbacks vinham como ondas: o rio escuro, a mansão dos Barcelos, sua mãe com a cabeça baixa, a sensação de não pertencer a lugar nenhum.

— Ju… — murmurou, baixinho. — Eu não sei. Eu não me sinto bem voltando.

A irmã ficou em silêncio por um instante. Não era comum. Quando Júlia se calava, era porque estava realmente percebendo algo.

— Ari… — ela disse, agora suave. — Por que voltar

te incomoda tanto?

Ariana fechou os olhos.

E tudo veio de novo.

As duas, meninas, grudadas uma na outra como se fossem uma só, chorando com saudade do pai e ao mesmo tempo com medo e fome.

A mãe sofrendo,

a pobreza.

O medo.

A perda de tudo.

— Ju, eu lembro de tudo — Ariana disse, a voz embargando. — Lembro da gente sem ter o que comer. Lembro da mamãe aceitando trabalhar como babá na casa dos Barcelos, do sofrimento e de ninguém nos apoiando.

— Ei… — murmura Júlia, agora delicada como só ela sabia ser quando era com a irmã.

— Eu lembro de como eu prometi que nunca mais ia depender de ninguém. Nunca mais. — Ariana respirou fundo. — Voltar pra Carapá parece… voltar pra aquela menina que eu era. E eu não quero.

Do outro lado, Júlia ficou em silêncio por alguns segundos.

Depois disse:

— Mana… talvez seja justamente por isso que tu tem que ir.

Ariana mordeu o lábio.

Sabia que a irmã estava prestes a fazer um discurso. E, com Júlia, discursos sempre vinham com sinceridade crua.

— Ari, olha pra ti. — começou ela. — Tu virou a melhor aluna da faculdade federal, entrou em terceiro lugar, brilhou com aquela campanha sobre desigualdade que até hoje repercute… Trabalha numa agência gigante, mora num AP que tu mesma paga, tem uma carreira que todo mundo sonha. Tu venceu, mana.

Ariana ficou em silêncio. A voz da irmã tinha o poder de entrar em lugares dentro dela que ninguém mais alcançava.

— Então por que — continuou Júlia — tu ainda deixa aquela menina assustada do passado mandar na tua vida?

A frase acertou Ariana como um soco.

— Não é isso… — ela tentou argumentar.

— É sim. — Júlia cortou, mas com carinho. — Carapá não é só as coisas ruins, Ari. A gente viveu muita coisa bonita lá também. Te lembra do pai fazendo tapioca queimada? Da mamãe penteando nosso cabelo na beira do rio? Da festa da Andiroba todo ano? A cidade… — ela suspirou. — A cidade é parte da gente.

Ariana sentiu um calor subir no peito, o tipo de emoção que ela sempre tentava esconder.

— Ju… eu só… tenho medo de sentir tudo de novo.

— Sente, mana. — disse a irmã, sem hesitar. — Sente tudo. A dor, a saudade, a raiva. Sente e volta pra casa sabendo que tu não é mais aquela guria que dependia dos Barcelos, nem aquela que tinha vergonha das origens. Tu é Ariana Luna. E ninguém tira isso.

Um silêncio cheio de significado preencheu a ligação.

— Além disso — completou Júlia, mudando o tom de repente — eu quero lembrancinha. Se tu não me trouxer doce de cupuaçu, eu nunca mais falo contigo.

Ariana riu pela primeira vez naquela noite. Uma risada curta, mas real.

— Tu é impossível, Ju.

— Eu sei. — ela sorriu, dava pra ouvir. — Agora me diz: tu tá indo porque quer ou porque alguém te mandou?

A pergunta veio certeira. Ariana respirou fundo.

— É trabalho. — confessou. — Uma campanha grande. Eles querem alguém que entenda a cidade. E… bom… quem entende mais do que eu, né?

— Ihhh, mana… — Júlia cantarolou. — Isso tem cheiro de destino.

— Ah, por favor. — Ariana revirou os olhos. — Eu só quero fazer meu trabalho e voltar.

— Claro, claro. — disse Júlia, claramente duvidando. — Mas escuta: se tu sentir que tá pesado demais, me liga. Eu sou só um toque de distância.

Ariana fechou os olhos.

Ali, no meio do caos interno, a voz da irmã era o único lugar seguro do mundo.

— Obrigada, Ju.

— Sempre. Agora vai dormir. Amanhã começa a tua aventura — e, do jeito que te conheço, tu vai acordar cedo surtando.

A ligação terminou.

E Ariana ficou olhando para o teto, o coração acelerado.

Carapá.

A terra da andiroba.

e a terra dele, Eduardo...

A terra onde tudo começou — e onde, agora, ela teria que voltar.

Mesmo que não estivesse pronta.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App