A noite caiu pesada sobre a mansão, como um cobertor úmido e frio. Do lado de fora, o vento soprava forte, balançando os galhos das árvores como dedos esqueléticos contra os vidros. Luna lia no quarto de hóspedes, tentando ignorar o silêncio quase claustrofóbico daquela casa enorme demais, vazia demais.
Desde a última sessão com Caio, havia se mantido em silêncio. Ele, por sua vez, também não parecia disposto a continuar a guerra — mas Luna sabia: um homem como ele nunca abaixava a guarda sem um motivo. Estava observando. Esperando. Analisando os pontos fracos.
O barulho abrupto de algo se quebrando no andar de baixo fez seu coração disparar.
Ela se levantou num pulo, calçou os chinelos e desceu as escadas às pressas.
— Caio?!
Nenhuma resposta.
A sala estava escura, mas a luz do abajur tremulava, revelando o que restou de um copo de vidro no chão, em meio a uma poça de água — ou seria suor?
Caio estava caído ao lado da cadeira de rodas.
— Meu Deus — ela correu até ele, ajoelhando-se. — O que aconteceu? Consegue falar?
Ele tentou responder, mas o rosto estava pálido, suado, os olhos semicerrados. A respiração estava irregular. O corpo inteiro tremia. Um filete de sangue escorria do canto da boca.
Luna segurou seu pulso — acelerado, mas fraco.
— Você está com febre. Está desidratado. — Ela passou os dedos pelo rosto dele. — Há quanto tempo não se alimenta direito?
Ele tentou balançar a cabeça, mas a expressão de dor o impediu.
— Não quis chamar ninguém? — ela murmurou, já começando a agir. — Orgulho demais pra admitir que está mal, né?
Correu até a maleta de emergência que sempre deixava na sala. Aplicou um analgésico, mediu a pressão. Alta. Muito alta.
Ela o colocou de volta na cadeira com dificuldade, usando a força que aprendeu na marra durante os anos de plantão e plantões.
— Vamos, Caio. Me ajuda, pelo menos um pouco — disse, suando, enquanto o levantava com todo o cuidado.
Ele gemeu, mas se deixou guiar.
Dez minutos depois, já no quarto dele, Luna limpava o ferimento do lábio e colocava uma compressa fria em sua testa.
— Você podia ter morrido ali — disse ela, com raiva na voz. — Sozinho. No chão.
— Não seria a pior coisa do mundo — ele murmurou, com os olhos fechados.
— Que tipo de homem diz isso?
— O tipo de homem que já morreu por dentro — respondeu, encarando-a, de repente lúcido demais. — Você acha que a cadeira de rodas é o que me destrói? A paralisia é o de menos. Eu fui enterrado vivo muito antes disso, Luna.
Ela não respondeu de imediato. Apenas o olhou — realmente o olhou — pela primeira vez desde que pisou naquela casa. Havia dor nos olhos dele. Uma dor que ela reconhecia. Uma dor que já tinha visitado seu próprio peito.
— Você é um covarde. — A voz dela saiu baixa, mas firme. — E está usando a dor como escudo pra não sentir mais nada. Mas saiba de uma coisa, Caio Ventura: se você quiser continuar vivo, vai ter que lutar. Nem que seja contra você mesmo.
Ele fechou os olhos, como se quisesse se proteger daquela verdade.
Na manhã seguinte, Luna acordou cedo e desceu silenciosamente.
Encontrou o quarto de Caio vazio.
O coração apertou.
Mas então viu: ele estava na varanda, sentado na cadeira de rodas, coberto com um cobertor xadrez. Observava o jardim.
Quando ela se aproximou, ele não virou o rosto. Só disse:
— Obrigado.
— Pelo sermão ou pela injeção? — Por não desistir.Luna não respondeu. Sentou-se ao lado dele, em silêncio.
Talvez, naquele momento, não fosse necessário dizer mais nada.