O segundo dia começou cedo, com a luz invadindo o quarto por entre as frestas da cortina pesada. Luna acordou assustada, com a estranha sensação de estar num lugar onde não pertencia. O som abafado de passos no corredor a lembrou: era real.
Vestiu uma roupa simples, prendeu o cabelo e desceu as escadas, pronta para enfrentar o "paciente". O contrato dizia que ela deveria cuidar da fisioterapia básica, administrar os remédios, monitorar os sinais. Mas não dizia como lidar com o sarcasmo crônico e o veneno que Caio Ventura carregava no olhar.
Na sala de estar, o encontrou na mesma posição da noite anterior: em frente à lareira, cadeira de rodas ao lado do sofá, olhos perdidos na chama imaginária de uma lareira apagada.
— Bom dia — ela disse, com esforço.
— Depende do ponto de vista. — O meu é de quem vai passar o dia tentando não jogar uma almofada na sua cara. — Que doce.Ela caminhou até ele, abrindo uma maleta com os equipamentos.
— Vamos começar com os exercícios. Fisioterapia leve. Braços e ombros primeiro. Depois, pernas. — Não estou a fim. — Que pena. Não é opcional.Caio girou o rosto lentamente em direção a ela, como se a desafiasse.
— Você não manda em mim. — Não, mas seu contrato com a clínica me dá autonomia para te tratar. Ou prefere que eu chame a enfermeira chefe?Ele praguejou em voz baixa, mas estendeu os braços.
— Faça o que quiser. — Que bom que concordamos.Durante os primeiros movimentos, Luna manteve o foco no trabalho. Alongamentos, estímulos circulatórios, flexão. A musculatura de Caio ainda estava forte, apesar da paralisia parcial. Ele mantinha a postura rígida, como se estivesse em constante disputa com o próprio corpo.
Mas foi quando ela se abaixou para iniciar os estímulos nas pernas que a tensão se instalou.
— Não. Isso não.
— Caio, você precisa. É parte do tratamento. — Eu disse que não.Ela ergueu os olhos para ele. O olhar estava escuro, tempestuoso. Mas havia algo mais por trás daquela resistência: medo. Vergonha.
— Você tem duas opções — disse, com calma. — Pode lutar contra mim e piorar seu estado... ou confiar. Só um pouco.
— Você acha que eu vou me humilhar na sua frente? — Não acho nada. Só estou tentando te ajudar.Houve um silêncio pesado. Então ele desviou o olhar e murmurou:
— Fecha a porta.Ela obedeceu. Quando voltou, Caio já havia retirado o cobertor que cobria as pernas. Os músculos inferiores estavam mais magros do que deveriam, denunciando o tempo de inatividade. Luna respirou fundo e ajoelhou-se à frente dele, com a delicadeza de quem lida com cacos de vidro.
O toque foi leve. Preciso. Profissional.
Mas cada segundo parecia um teste.
— Você ainda sente isso? — ela perguntou, pressionando a lateral da coxa.
— Um pouco. Como se o corpo fosse de outra pessoa.Ela assentiu.
— Vamos estimular as terminações nervosas. Pode doer. — Dor eu aguento. O que não aguento é a pena.— Ótimo. Porque eu não tenho pena de você. — Ela ergueu os olhos, firme. — Tenho um passado entalado na garganta e um trabalho a cumprir. Vamos manter assim?
Por um segundo, ele quase sorriu.
No fim da sessão, Caio parecia exausto, mas menos defensivo. Luna se levantou, recolheu os materiais e se preparava para sair, quando ele disse:
— Você odeia estar aqui, né?
— Menos do que odeio lembrar o motivo de estar aqui. — Você ainda guarda mágoa? — Não. — Ela olhou sobre o ombro. — Mágoa seria se eu ainda me importasse com você. E eu não me importo.Mentira.
Ela saiu antes que ele pudesse responder. E só no quarto, sozinha, ela percebeu que as mãos tremiam.
Caio ficou em silêncio por um longo tempo depois que ela saiu.
Luna agora era uma mulher. Forte. Segura. Mas o jeito como ela evitava olhar diretamente para ele… entregava que havia rachaduras ali também.E talvez, só talvez, ele ainda soubesse onde apertar para fazê-las sangrar.