Capítulo 5

Isabela Andrade

Nossos olhos se cruzaram e, por um instante, o tempo pareceu hesitar.

Ele estava lá, do outro lado do salão, com a mesma presença serena e indecifrável da noite anterior. Sentado em sua cadeira de rodas, com os ombros eretos e o olhar firme, observava-me com um misto de surpresa contida e... familiaridade.

Era como se nos reconhecêssemos, como se nenhuma parte daquela noite tivesse sido esquecida — nem por mim, nem por ele.

Mas, antes que eu pudesse reagir, o garçom se aproximou da minha mesa e quebrou o momento como vidro estilhaçado.

— Madame? Está tudo certo com a salada? — perguntou, com gentileza. — Notei que a senhorita ainda não comeu, quer que eu traga outra do seu agrado?

Olhei para o prato como quem acorda de um devaneio. Folhas intactas, vestígios de molho espalhados de um lado para o outro. Eu nem havia percebido.

— Está sim, obrigada — murmurei, recolhendo o garfo. — Pode trazer a conta, por gentileza. Já estou de saída.

O garçom trouxe a conta e, logo em seguida, se afastou. Paguei a refeição incompleta e me levantei. Ainda assim, hesitei. Senti que ir embora sem dizer nada seria o mesmo que fugir. E eu já estava cansada de fugir de tudo — dos olhares, da vergonha, de mim mesma.

Ele estava com um amigo agora. Um homem de pele morena, cabelos escuros bem penteados e olhos castanhos vivos, vestido com uma elegância descontraía, havia nele um ar leve, quase divertido.

Quando me aproximei, foi ele quem me notou primeiro. Me lançou um sorriso inesperado — nada invasivo, apenas surpreso. E, em seguida, olhou para o homem que havia me ajudado ontem como se perguntasse em silêncio: é ela?

Parei a poucos passos da mesa e respirei fundo.

— Me desculpem interromper — disse com a voz suave, mas firme. — Eu só queria agradecer formalmente pelo que fez por mim ontem.

Ele apenas me observava, os olhos intensos fixos nos meus, um tom esverdeado de tirar o fôlego. Aquele silêncio que ele carregava parecia mais pesado de perto.

— Você me ajudou quando eu estava vulnerável, e embora não ache que tenha sido grande coisa, para mim foi.

Houve uma pequena pausa antes que eu continuasse.

— Posso pagar o seu almoço? Como forma de agradecimento.

— Não é necessário — ele respondeu com a voz baixa, porém firme. Sem desviar o olhar.

Assenti, mesmo sem conseguir esconder o leve constrangimento.

— Então... posso, pelo menos, saber o seu nome?

Seus olhos pareceram se suavizar, apenas por um segundo.

— Matheo.

Engoli em seco. O nome combinava com ele, ambos muito bonitos.

— Sou Isabela. — estendi a mão com delicadeza. Ele não apertou com força, mas tocou minha pele com uma firmeza controlada. — Aqui está meu cartão. — acrescentei, tirando meu cartão do ateliê da bolsa e o entregando.

— Se algum dia precisar de mim, estarei lá. — sorri com honestidade. — Sinta-se à vontade caso queira visitar, será um prazer recebê-lo.

Ele pegou o cartão. Não sorriu. Mas também não recusou.

— Tenham um bom almoço — despedi-me, com um leve aceno, e me afastei.

Assim que atravessei a porta do restaurante, respirei fundo, como se apenas ali o ar voltasse aos pulmões. O sol se escondia atrás de nuvens tímidas e o vento me bagunçava os cabelos.

Voltei ao ateliê sem pressa, carregando sacolas com tintas, telas e pincéis.

Ao entrar, o cheiro familiar de madeira, tinta e jasmim me envolveu como uma memória boa tentando me acolher. Subi as escadas devagar. Tudo estava em ordem — como eu sempre deixava. A organização me ajudava a respirar.

Fui até as prateleiras e comecei a guardar os novos materiais. Separei as tintas por cor e intensidade, como sempre fazia. Pincéis em seus frascos de vidro, panos dobrados por tom e função, tubos alinhados com os rótulos virados para frente. A ordem me dava paz. Ou algo próximo disso.

Fui até o canto da sala onde mantinha minha vitrola. Era uma relíquia da minha infância, herdei do meu pai. Ao lado, meus discos brasileiros estavam organizados com carinho. Eu e meus avós somos brasileiros. Paris era o agora, mas o Brasil ainda morava em mim.

Escolhi um disco do Tom Jobim e coloquei para tocar. A agulha deslizou suavemente e logo a música encheu o ateliê:

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...”

A velha vitrola tocava “Garota de Ipanema”, e por um momento, fechei os olhos. Era como voltar para casa — não a de paredes, mas a de dentro.

Prendi os cabelos em um coque, tirei os sapatos e os brincos, coloquei meu avental e caminhei até a tela inacabada encostada no cavalete, perto da janela.

Era uma paisagem marítima. Inicialmente calma, serena. Mas hoje, meus traços não conseguiam mais ser suaves.

Peguei o pincel.

O céu azul tornou-se cinza. O mar se revoltou em tons pesados. Pintei as ondas como facas cortando a superfície. As nuvens engrossaram. Tudo se tornou escuro. Denso. Tempestuoso.

No centro da tela, um barco pequeno lutava contra a violência das águas. Frágil, mas resistente. E no canto superior, deixei escapar um feixe de luz — tímido, mas presente.

A tela era o que eu sentia: uma batalha entre a escuridão e a esperança.

Continuei pintando, com os pés descalços no chão frio e a voz suave de Tom embalando o caos que eu transbordava em cores.

Era minha dor. Mas também minha cura.

Pintei por horas. O tempo se dissolveu em pinceladas, respingos e camadas. A luz do dia foi dando lugar aos tons dourados da tarde, e eu sequer percebi.

Até que ouvi o som leve da porta principal se abrindo.

Parei.

Por um instante, fiquei imóvel. Talvez fosse Rebeca, ou um cliente, quem sabe alguém apenas curioso. Soltei o pincel devagar, tirei o avental e pendurei no gancho próximo. Peguei um par de sapatos confortáveis que mantinha perto da porta — abertos, de couro macio, com solado baixo — e calcei.

Desci pelo elevador com a cabeça ainda em alto-mar, meu corpo ainda leve da tempestade que havia despejado na tela.

Quando as portas do elevador se abriram, meu coração quase parou.

Ali, no meio da galeria do ateliê, estava ele.

Matheo.

Sentado em sua cadeira de rodas, de frente para uma das minhas obras mais pessoais. Um quadro que raramente deixava exposto — e que hoje, por alguma razão, estava ali.

A tela era dominada por tons frios: cinzas, pretos, brancos. No centro, a figura de um homem com o corpo inclinado, como se estivesse sentindo dores. No lugar da cabeça, um coração humano — vermelho, pulsante, escandalosamente vivo. A técnica era espatulada, o que deixava os traços crus, quase agressivos. A imagem era clara e, ao mesmo tempo, despojada. E intensa.

Era uma metáfora sobre sentir demais. Sobre quando o que deveria ser racional se transforma em dor, por deixarmos as emoções nos dominarem.

Ele parecia absorvido.

Aproximei-me devagar.

— Matheo, que bom ver você aqui — disse, tentando não parecer nervosa. — Como posso ajudá-lo?

Ele se virou para mim, e por um segundo, pareceu segurar uma risada.

— Tem tinta no seu rosto — comentou com um sorriso contido, olhando diretamente para minha bochecha.

Fiquei sem reação por um momento, até sentir a pele esquentar de vergonha.

— Ah, meu Deus... — levei a mão ao rosto, rindo de nervoso. — Só um instante, vou me limpar.

— Espere. — respondeu, antes que eu pudesse me afastar.

Ele tirou um lenço branco e dobrado do bolso interno do terno. Com um gesto calmo e direto, estendeu a mão e limpou, com delicadeza, o tom azul escuro que manchava minha bochecha. Seus dedos roçaram minha pele por um instante a mais do que o necessário.

Fiquei sem palavras.

Dobrou o lenço como se nada tivesse acontecido, o guardando de volta com precisão.

— Vim te fazer uma proposta. — disse, por fim.

E então, tudo pareceu parar outra vez.

Fiquei ali, diante dele, com o rosto ainda quente e o coração apertado no peito. Algo me dizia que aquela proposta não seria comum.

E, mesmo sem saber o que era, eu queria ouvir.

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