Isabela Andrade
Acordei com uma dor de cabeça latejante. Era como se martelos ritmados batessem nas têmporas, me lembrando a cada segundo da noite anterior. Meu corpo pesava e um vazio cruel ocupava o espaço que antes era cheio de sonhos. Olhei ao redor, reconhecendo vagamente o quarto do andar de cima do ateliê. Meus quadros, minhas coisas. Pelo menos, eu estava em casa. Mas não me lembrava como havia chegado ali. Logo ouvi a porta se abrindo devagar. — Bom dia... — Rebeca entrou com uma bandeja nas mãos. O cheiro de pão fresco e café me atingiu como um abraço distante. — Trouxe seu café da manhã da padaria. É aquele que você ama: croissant de amêndoas, suco de laranja natural, e geleia de framboesa. Ah, e um comprimido. Para dor de cabeça. — Não estou com fome, Rebeca... — murmurei, virando o rosto para o lado. Ela colocou a bandeja na mesinha ao lado da cama e sentou-se, cruzando os braços. — Eu sei. Mas você precisa comer alguma coisa, nem que seja um pedaço. Se não for por você, que seja pelos seus avós. Eles estão muito preocupados, inclusive. Ligue para eles assim que puder. Seu tom gentil, mas firme, me fez ceder. Peguei o croissant com as mãos trêmulas e dei uma mordida pequena. A massa amanteigada se desfez na boca, mas parecia cinza. Nada tinha gosto. — Como eu vim parar aqui? — perguntei em voz baixa. Rebeca suspirou, como se estivesse esperando por essa pergunta. — Um homem te trouxe. Te encontrou em um bar. Você estava completamente fora de si. Ele te ajudou, te protegeu... ele atendeu o seu celular quando eu estava te ligando, e a trouxe até aqui. — Um homem...? — tentei puxar pela memória, mas era tudo nebuloso. Um rosto desfocado, uma voz grave... olhos intensos. — Eu lembro vagamente... não sei o nome dele. — Nem eu. Ele não quis dizer. Mas foi educado, firme. Meio frio até. Só sei que, se não fosse ele, talvez as coisas tivessem saído muito piores. — Rebeca parou um instante, depois completou com um sorrisinho fraco. — Mas ele era lindo. E tinha uma daquelas belezas difíceis de esquecer. Se você o visse de novo, com certeza lembraria. Assenti em silêncio. Uma parte de mim queria agradecê-lo. Outra parte só queria desaparecer do mundo. — Eu vou sair por um tempo, preciso ir à empresa resolver algumas coisas, mas não demoro — Rebeca disse, levantando-se. — Aliás, aquela senhora gentil, de quem você gosta tanto, me pediu para avisar que suas encomendas chegaram. — Sério? Vou ir buscar agora mesmo. Até porque a vida não para, não é? — murmurei. — Não mesmo. Mas você não está sozinha. — ela me olhou com carinho. — Se precisar de mim, sabe onde me encontrar. — Espere, Rebeca. — Me levantei com relutância e fui em sua direção, a puxando para um abraço. — Obrigada por ser tão maravilhosa, eu te amo muito! — Para com isso, Isa, senão eu também choro. — Disse se afastando e limpando as minhas lágrimas. — Eu tenho muito orgulho de você, e tudo isso que está acontecendo irá passar. Você voltará a sorrir como antes, de forma radiante, e será muito feliz, ok? Agora vai tomar um banho, deixe o vestido aqui do lado de fora que eu me livro dele para você depois. Ali naquela bolsa tem uma troca de roupa que separei quando levei seus avós. Ela me deu um beijo e saiu às pressas, mesmo com tantos afazeres ela ainda tirava um tempo para cuidar de mim, e eu valorizava muito isso. Sentei novamente na cama, tomei o comprimido e fiquei ali por mais alguns minutos, até que me obriguei a levantar. Entrei no banheiro que ficava anexo ao quarto do ateliê. Tomei um banho longo, como se a água pudesse lavar a vergonha, a dor, o abandono. Eu não conseguia acreditar que o Rafael fez aquilo comigo, mas também não sou mulher de dar segunda chance. Sei o meu valor e o que eu mereço, mas a dor da traição é a que a gente nunca espera. Rebeca separou um vestido azul marinho, midi, mangas bufantes até o cotovelo, justo até a cintura, com o caimento solto e uma fenda elegante. Combinei com um par de saltos pretos e minha bolsa de ombro. Coloquei acessórios prateados e tentei disfarçar os olhos inchados com uma maquiagem leve. Soltei os meus cabelos e dei uma leve secada neles, optando por deixá-los naturais, as ondas caíram sobre meus ombros de forma despretensiosa. O espelho me mostrava uma mulher partida tentando parecer inteira, mas até que eu estava apresentável. Saí do meu ateliê indo buscar as tintas que faltavam para terminar alguns quadros, hoje eu passaria o dia todo pintando para acalmar o meu coração. A cidade seguia seu curso indiferente à minha dor. Fui até a loja de materiais da Madame Margot, uma senhora gentil e experiente, que sempre me tirava um sorriso quando a via. Ela tem um jeito leve de tratar a vida, e estar com ela é como ser abraçada por ondas de calmaria. Assim que eu entrei em sua loja, a vi atrás do balcão. Ela, ao me ver, me lançou o mesmo sorriso acolhedor de sempre. — Olha só o que o vento me trouxe, mon artiste préférée (minha artista preferida). — Veio até mim me dando um abraço reconfortante. — Que bom vê-la de novo, querida, como está? — Madame Margot, também estou feliz em vê-la. Confesso que estava com saudades das nossas conversas, é sempre bom estar com a senhora. — Disse enquanto forçava um sorriso fraco. — Você está bem, filha? Seus olhos estão tristinhos, embora você queira escondê-los, o que eu sempre lhe digo? — Eu sei, Madame, não se pode esconder o que sente através dos olhos, eles são a porta da alma. Ela me olhou por um tempo, percebeu que eu não queria tocar no assunto e respeitou o meu espaço. — Bom, mas já que você veio, deixe-me te mostrar as novidades, venha por aqui, querida. Me conduziu até as tintas que eu havia encomendado e, por sorte, ela conseguiu uma que era bem difícil de ser encontrada, o que me deixou feliz, mesmo que por um momento. Estava procurando aquela cor há uns meses, mas não estava conseguindo encontrar. Aquela marca, em específico, tinha uma textura perfeita, por isso eu a queria tanto. Depois de perceber que eu não estava muito bem, ela me presenteou com essa tinta, cobrando somente as outras que eu havia pedido. Insisti que não era necessário, mas ela conseguiu me convencer, como sempre. Depois de pagar a compra, me despedi da Madame Margot. Ao sair de sua loja, decidi ir à uma praça que ficava do outro lado da rua para ligar para os meus avós, ainda não havia falado com eles. Me sentei em um dos bancos e disquei o número. Um tempo depois, minha vó atendeu. — Alô, filha? Onde você está? Está tudo bem? — a preocupação era nítida em sua voz, reuni todas as forças que tinha para acalmá-la. — Oi, vovó. Está tudo bem sim, ontem dormi no ateliê com a Rebeca. Acabei de pegar umas tintas que encomendei e já estou voltando para lá. Houve um silencio ensurdecedor por alguns segundos. — Isa, meu amor, você não pode fingir que nada aconteceu, quer conversar sobre isso? Venha para cá almoçar, podemos te ajudar com o que for necessário. — Vovó, eu ficarei bem, não estou fugindo da situação, mas eu preciso de um tempo para colocar a cabeça no lugar, não se preocupa comigo, eu estou bem. Irei jantar com a senhora e o vovô mais tarde, tudo bem? — Está bem, meu anjo. Nós te amamos muito, não se esqueça. Fique com Deus. — Beijos, vozinha, eu também amo muito vocês! Se cuidem. Depois de desligar, decidi almoçar fora. Queria distrair a mente, encontrar algum respiro, ainda que falso. Escolhi um restaurante diferente, mais afastado. Sentei-me sozinha em uma mesa perto da janela. Pedi algo leve, uma salada e um suco de laranja. Quando o garçom trouxe, por algum motivo, não consegui comer, fiquei ali encarando o prato como se esperasse que a vontade fosse aparecer, mas isso não aconteceu. Tomei uns goles do meu suco e comecei a olhar a paisagem pela janela. Algo estava estranho, senti um olhar sobre mim. Comecei a passar minha visão pelo restaurante. E então, eu o vi. Sentado à uma mesa que não estava muito longe, com outro homem, sua postura impecável e imponente. O homem da noite anterior. Eu o reconheci imediatamente. Era impossível esquecer aquele rosto. Principalmente aqueles olhos, que eram inconfundíveis. Nossos olhares se cruzaram. E pela primeira vez em muito tempo, meu coração — ainda em pedaços — pareceu dar um pequeno sinal de vida.