Matheo Montclair
Meu pai nunca foi um homem de meias palavras. Era rígido, severo, exigente — e, ainda assim, sempre houve algo nos olhos dele que ia além do controle. Preocupação. Ele não dizia, mas carregava. Talvez fosse seu jeito torto de amar. — Um mês — ele disse, apoiado na bengala com que raramente aparecia em público. — Você tem um mês para encontrar uma noiva decente, ou eu encontrarei por você. E desta vez, Matheo… não vou aceitar mais desculpas. Engoli a raiva em silêncio. A mesma raiva de sempre. Mas não respondi. Era um jogo que eu conhecia bem. O peso do nome Montclair era uma armadura e uma prisão. E ele não hesitaria em usá-lo contra mim — mesmo que, no fundo, só quisesse me proteger. A raiva veio, como sempre vinha, mas não deixei transparecer. Meu pai sempre acreditou que tudo era questão de aparência. Alianças, sobrenomes, negócios. Tudo misturado. Lucia foi a única mulher por quem eu realmente senti algo. A mulher com quem eu planejava me casar. Ela ria com os olhos, falava cinco línguas, dançava como se o mundo fosse feito de música. Eu a amava. Amava com a intensidade de quem se jogaria na frente de um trem, se fosse preciso. E então veio o acidente. Carro. Chuva. Um motorista distraído. E o impacto. Quando acordei, tudo o que restava era dor. E a cadeira. A maldita cadeira de rodas que me acompanhará pelo resto da vida. Lucia veio me ver duas vezes. Duas. Na segunda, disse que era jovem demais para aquilo. Que precisava de liberdade. Que me amava, mas não daquele jeito. Pegou um avião e sumiu do mapa. Nunca mais deu notícias. Desde então, a única coisa que restou em mim foi o controle. O silêncio. O distanciamento. Não existe dor quando você não sente. Saí de casa furioso, precisava de uma bebida forte. Chamei meu amigo Louis para irmos à um bar que frequentamos desde a adolescência, e ele disse que me encontraria lá. Oscar, meu motorista, após chegarmos no local, estacionou o carro e me ajudou a descer. O bar era antigo, discreto, meio esquecido por Paris. Do jeito que eu gostava. Meu amigo Louis estava atrasado, como sempre. Mas não me importei. Me dirigi até o balcão com certa dificuldade, como sempre fazia. Já estava acostumado com os olhares, mesmo que ali fossem raros. Ninguém ousava me dirigir a palavra, eu já era conhecido por toda a França. Um CEO dono de metade dos empreendimentos de Paris, com negócios por toda a França. Desde que assumi o cargo de meu pai, expandi as empresas de modo surpreendente, mas, para isso, tive que assumir uma imagem impiedosa, que consegue tudo o que quer, não importa quem seja a concorrência, em sempre venço. — O de sempre — pedi ao barman. Ele assentiu, servindo o uísque envelhecido, a dose exata que me permitia relaxar sem perder o controle. Minutos depois, recebi a mensagem:"Emergência de última hora. Não vou conseguir ir. Me perdoa." Suspirei, deixando o celular sobre o balcão. Foi quando a porta se abriu com força, e tudo ao redor pareceu parar. Ela entrou como uma tempestade que esqueceu o próprio rumo. Os cabelos ondulados e castanhos estavam presos em um coque despojado, com alguns fios soltos. Não havia maquiagem em seu rosto, apenas o vestígio de quem chorou até que as lágrimas secassem. Os olhos estavam inchados, vermelhos, fundidos com um vazio que eu reconheci de imediato. E que belos olhos... Algo neles fazia eu querer me perder naquela imensidão esverdeada. Ela parou na entrada, tirou os sapatos com um gesto brusco e caminhou descalça pelo bar. Usava um vestido de noiva que, mesmo rasgado na altura dos joelhos, era um belo vestido. Ele valorizava todas as suas curvas e realçava o seu belo corpo esculpido. É a mulher mais linda que eu já vi. Ela passou por mim e deixou o rastro do seu delicioso perfume, um cheiro viciante. Tudo nela, por algum motivo, me chamava atenção, mesmo eu não querendo admitir. Sentou dois bancos à minha esquerda, preenchendo o ambiente com a sua presença marcante. — A bebida mais forte que você tiver, por favor. — disse ao barman, com a voz embargada, mas firme. O homem hesitou, mas serviu. Ela virou de uma vez, sem piscar. Mais uma. Depois outra. Na quarta dose, seus olhos marejados passaram rapidamente pelos meus. Eu mantive o olhar fixo no copo, não porque não me importasse. Mas não queria que ela pensasse que eu estava a encarando. Na quinta dose, ela se virou um pouco na minha direção. A bebida começava a fazer efeito, sua voz já vinha mais solta. — Você tem olhos tristes. Mas... bonitos — disse com um leve sorriso torto. Aquilo me pegou de surpresa, mas a ignorei. Ela não insistiu. Apenas abaixou o olhar, voltando à sua luta silenciosa com o copo. Dois homens sentados ao fundo, perto da parede, começaram a cochichar. Um deles fez um gesto na direção dela, e o outro se levantou, vindo até o balcão. — Ei, princesa... — disse, com aquele tom de falsa gentileza que só disfarça más intenções — não devia beber sozinha num lugar assim. Quer companhia? Ela não respondeu. Manteve o olhar fixo no copo, os ombros tensos. — Tá triste? Podemos te animar se quiser... — insistiu o outro, já chegando perto. Foi quando falei. Baixo, firme e letal: — Ela está comigo. Ambos pararam. Me olharam. O segundo hesitou ao reconhecer meu rosto. O primeiro, mais estúpido, ainda tentou uma provocação: — Achei que estivesse sozinho... — Não estou. E vocês não vão querer discutir isso comigo. — O tom era neutro. Nem bravo, nem ameaçador, apenas definitivo. Eles entenderam. Recuaram como cães farejando perigo. Ela me olhou com os olhos úmidos, confusos. — Obrigada... eu... — Não me agradeça — cortei, frio. — E você não deveria beber assim estando sozinha, está sendo irresponsável. Mesmo assim, ela sorriu. Um sorriso pequeno e fraco, mas genuíno. — Você parece tão... fechado. Mas não é uma pessoa ruim. Só está cansado. — Você não sabe nada sobre mim. — Todo mundo o teme, não é? — murmurou, com aquela leveza que só ela parecia ter — Mas você tem os olhos de alguém que já sofreu muito, por isso afasta as pessoas. Houve um silêncio estranho. Incômodo. Ela me viu. Como se despisse a minha alma com os olhos. — Você está bêbada. Ela riu, um som quase sem vida. — Um pouco. Confesso que minha tolerância para o álcool é baixa. — Ela me encarou novamente, no fundo dos meus olhos, como se despisse a minha alma. — Eu posso pagar uma bebida para você? Como forma de agradecimento. — Sorriu, novamente estava sorrindo. Ela era doce. E não forçava aquilo. Mesmo estando claramente desolada. — Por que você está tentando ser gentil? — perguntei, não por curiosidade, mas por espanto. Ela me encarou, sem desviar. — Porque eu não quero que a dor me transforme em alguém que não sou. Já perdi muito hoje. Seria muito triste me perder também... — disse diminuindo tom e apagando aos poucos. E então o corpo dela cedeu. Simples assim. Como se sua alma tivesse dito: “chega”. Ela desmaiou, sem qualquer aviso. A segurei antes que escorregasse do banco. Era leve. Macia. Cheirava a flores e desastre. Suspirei, já sabendo que ia me arrepender. Pedi ajuda ao barman e a carreguei na cadeira comigo. Enquanto ligava para o Oscar. senti o seu celular vibrar, mas ignorei. E então ele vibrou de novo. Insistente. Desesperado. Olhei para ela em meus braços. Seus olhos fechados, a respiração leve. Onde, diabos, estava aquele aparelho? Ela não tinha bolsa. E o vestido... não parecia ter bolsos — pelo menos não à primeira vista. Mas ao ajustá-la com mais cuidado no colo, senti uma leve saliência disfarçada sob a saia, do lado esquerdo. Um compartimento interno, costurado estrategicamente no forro, provavelmente para emergências ou objetos pessoais. Inteligente. Discreto. Deslizei a mão com cuidado até o local e puxei o aparelho. A tela acesa exibia uma ligação: “Alma Gêmea”. Atendi, mesmo sem saber exatamente por quê. — Isabela?! Pelo amor de Deus! Onde você está?! — A voz do outro lado era feminina, acelerada, e completamente tomada pelo pânico. Ela chorava. — Não faça nenhuma besteira, amiga! Por favor! Apenas me diga onde está e eu irei imediatamente, seus avós acham que você está comigo no ateliê. — Ela está segura. — respondi, firme. — Só está inconsciente. Bebeu demais... desmaiou. O silêncio do outro lado foi imediato, seguido por soluços abafados. Ela devia estar em colapso. — Quem é você...? — perguntou com a voz trêmula.