James sempre começava o dia do mesmo jeito: café preto, sem açúcar, e as manchetes dos jornais lidas em silêncio absoluto, antes que qualquer ruído do mundo pudesse alcançá-lo. Depois de uma semana de reuniões, agendas atropeladas e conversas políticas que exigiam mais paciência do que estratégia, ele finalmente tirou uma manhã para trabalhar fora do escritório — algo que fazia, no máximo, duas vezes por ano.
Escolheu uma cafeteria discreta no Upper West Side. Anônima o suficiente para deixá-lo em paz, elegante o bastante para não ser vulgar. Abriu o notebook, digitou algumas respostas curtas e resolveu fazer algo raro: parar por alguns minutos.
Foi quando viu a mulher entrar.
Ela parecia ligeiramente perdida, como quem não sabia se estava no lugar certo. Usava um sobretudo azul-marinho, os cabelos loiros escuros presos de maneira prática, mas alguns fios escapavam, soltos, quase intencionais. Os olhos dela, atentos, varriam o ambiente com uma delicadeza concentrada. Não havia nada chamativo nela — mas havia algo impossível de ignorar.
Ela caminhou até o balcão, mas o atendente confundiu o pedido dela com o de outra pessoa. Em poucos segundos, a confusão se instalou: um senhor de terno cinza levantou a voz, o barista ficou visivelmente constrangido, e ela tentava explicar que só queria o cappuccino dela, não o americano com leite de amêndoas do outro cliente.
James, que assistia à cena sem intervir, ergueu-se por instinto quando viu a voz do senhor subir meio tom acima do aceitável.
— Desculpe — disse ele, aproximando-se com calma —, mas se alguém aqui precisa de um café com urgência, acho que sou eu.
O homem bufou, pegou seu copo e saiu. A mulher, surpresa, virou-se para James, confusa.
— Obrigada... — disse ela, com as bochechas ficando rosadas. — Eu realmente... estou grata.
James deu de ombros.
— Eu só quis... fazer o que todo mundo deveria. Impedir pessoas assim de destratar o outros dessa maneira. Considere isso como um... dever cívico.
Ela franziu os lábios, entre surpresa e divertida. Pegou o próprio copo com um aceno de agradecimento e se virou para sair, mas hesitou. Olhou para James novamente.
— Já que salvou minha manhã, posso pelo menos pagar seu café?
— Está tentando inverter os papéis de herói e donzela? — Ele arqueou uma sobrancelha, e pela primeira vez em dias, sorriu sem esforço.
Ela riu.
— Não costumo me deixar resgatar assim, mas hoje abro uma exceção.
James apontou com um gesto leve para a cadeira à frente da sua mesa.
— Pode pagar com conversa, se quiser.
Ela hesitou — um segundo apenas — antes de se sentar. Tirou o casaco, revelando uma blusa simples de gola alta, um colar delicado. Nenhum exagero. Nada de ensaiado.
— Sophie — disse ela, estendendo a mão.
— James.
Eles apertaram as mãos. Um toque breve, firme, discreto.
— Então, James, você sempre se oferece para salvar desconhecidas em cafés?
— Só quando estou fora de forma pra correr atrás de criminosos. Hoje é seu dia de sorte.
Ela riu outra vez, mas não desviou o olhar. Havia algo nos olhos dele — aquela rigidez contida, como se carregasse o mundo nas costas, mas recusasse admitir.
— E você? — ele perguntou. — Tem por hábito confundir pedidos e provocar crises diplomáticas em cafeterias?
— Na verdade, hoje era pra ser um dia tranquilo. Mas, aparentemente, Nova York tem outros planos.
— Nova York é implacável com os distraídos.
— E com os que tomam café demais.
Conversaram por vinte minutos. Sobre livros — ela gostava de romances do século XIX, ele, de biografias —, sobre cidades — ela havia morado em Florença por um ano, ele, em Londres por sete meses — e sobre a estranha sensação de reconhecer algo em alguém que acabou de conhecer.
James se surpreendeu rindo de um comentário sobre arte contemporânea. Sophie falava com clareza, sem floreios. Era observadora, ágil nas palavras, mas nunca agressiva. Cada resposta dela parecia mais uma janela aberta, e ele, alguém que passara anos trancado por dentro, começou a esquecer que tinha janelas.
O telefone de Sophie vibrou sobre a mesa. Ela olhou a tela e mordeu o lábio.
— Preciso ir. Compromisso de... família. — Ela disse a palavra como quem pisa num terreno sensível.
James assentiu, compreensivo.
— Foi bom te conhecer, Sophie.
Ela sorriu. Aquele tipo de sorriso que não se treina.
— Igualmente, James.
E saiu, sem prometer nada. Sem perguntar o sobrenome dele. E ele, por algum motivo que não ousaria especificar, não perguntou o dela.
Só depois, quando o cheiro do café ficou mais forte do que a lembrança do perfume leve que ela usava, é que James percebeu: ele não sabia muita coisa sobre ela. Mas a presença dela ficara. Como uma palavra esquecida na ponta da língua. Como algo que já começa a importar, antes mesmo de fazer sentido.
Dois dias depois, James voltou à mesma cafeteria. Sem intenção de reviver a cena anterior — ele não era dado a repetições sentimentais —, mas porque, no fundo, havia um certo incômodo em não tê-la visto novamente. Era o tipo de pensamento que ele tentava enterrar sob planilhas e reuniões, mas que insistia em reaparecer quando o dia ficava quieto demais.
Estava terminando o segundo café da manhã — uma taça de frutas e um espresso curto — quando a viu atravessar a calçada, enrolada num cachecol azul-marinho e com os cabelos soltos, dançando em torno do rosto como se o vento soubesse que ali havia algo para tocar com cuidado.
Sophie entrou distraída, tirando as luvas enquanto buscava algo na bolsa. Não o viu de imediato.
James não se mexeu. Apenas observou. Não era do tipo que acreditava em sinais ou coincidências, mas ali estava ela. Outra vez. A mesma mulher que, dias antes, tinha desestabilizado sua rotina com uma conversa simples e um sorriso espontâneo.
Ela o viu quando se aproximava do balcão. Parou por um segundo — não o suficiente para parecer surpresa, mas também não indiferente.
— Você por aqui de novo? — disse, com um meio sorriso.
— Estava começando a achar que tinha imaginado nosso primeiro encontro — respondeu ele, apontando com a cabeça para a cadeira à sua frente. — Ainda deve me um café.
— Achei que tinha pago com conversa.
— Pagou, mas não com juros.
Ela riu, mais baixo desta vez. Sentou-se devagar, olhando ao redor, como se certificando de que podia fazer isso. Havia algo mais tenso em seus gestos, uma hesitação imperceptível para olhos comuns — mas James era bom em detectar o que os outros fingiam não notar.
— Sua reunião de família foi boa? — ele perguntou, como quem testa um degrau antes de pisar.
Ela assentiu, mexendo o café recém-chegado com o pequeno bastão de madeira.
— Foi... tranquila. Como são as reuniões de família em geral, imagino.
— Ainda prefiro as corporativas. Pelo menos nelas, as facas são metafóricas.
Ela sorriu, mas não comentou. De repente, desviou o olhar para a rua, como se ali fora houvesse algo urgente a ser visto.
James apoiou o cotovelo na mesa, observando-a em silêncio por um instante. A Sophie de hoje estava menos aberta do que antes. Ainda inteligente, ainda gentil, mas como se carregasse um peso que antes não mostrava. E ele sentiu — sentiu com clareza — que havia algo segurando aquele espaço entre os dois. Algo que ela não via com clareza, mas que estava ali.
— Tem alguma coisa em mim que te deixa desconfortável? — perguntou, direto, porém sem agressividade.
Ela voltou os olhos para ele, surpresa pela franqueza.
— Não. Não é isso. É só... — hesitou, procurando uma palavra que não entregasse o que não queria revelar. — Às vezes, quando a gente se distrai, acaba se aproximando de lugares que não deveria.
James inclinou-se levemente para a frente. A voz baixa, quase cúmplice.
— E como você sabe que não deveria? Se mal teve tempo de descobrir.
Sophie respirou fundo. Tocou o colar em seu pescoço — um gesto distraído, inconsciente.
— Intuição. Ou talvez só bom senso.
Ele assentiu, respeitando a linha que ela acabara de traçar. Não insistiria. Ainda assim, não conseguiu esconder o que havia nos olhos: não era insistência, mas desejo genuíno de entender. De chegar perto, sem invadir.
— Não se preocupe — disse ele, com um tom mais leve, buscando aliviar a tensão. — Prometo não te pedir em casamento hoje.
Ela riu, dessa vez com mais sinceridade.
— Que bom. Já recebi convites piores.
O tempo entre eles passou mais rápido do que parecia. Conversaram sobre filmes — ela adorava os antigos, ele confessou não ter paciência para os mais novos —, sobre trabalho, sobre as manias estranhas que cada um carregava.
E quando Sophie se levantou, dizendo que precisava ir, James se levantou também. Mas não pediu o número dela. Não a tocou.
— Se o universo quiser nos pregar mais uma peça, estarei por aqui.
Ela o olhou por um segundo mais longo do que o necessário. E então sorriu, sem prometer nada.
— Cuide-se, James.
E foi embora, outra vez, como alguém que parte levando algo que não disse.
James ficou ali, observando a porta por onde ela saíra. Sabia que havia uma barreira. Ainda invisível, mas real. E, mesmo assim, queria atravessá-la. Talvez porque, pela primeira vez em muito tempo, algo dentro dele não queria apenas vencer — queria sentir.