Theodoro
Ela atendeu o telefone com uma destreza que eu não esperava.
Enquanto a voz do outro lado da linha disparava informações, a mulher — descalça, desalinhada, com o cabelo parecendo ter travado guerra com o vento — mantinha a compostura. Caminhou até minha mesa como se pertencesse ali, puxou a gaveta certa como se já trabalhasse comigo há meses, anotou cada detalhe com uma caligrafia surpreendentemente organizada e respondeu com uma educação que, confesso, me surpreendeu.
Por um breve momento, minha mente silenciou o ruído irritante de tudo à minha volta e eu apenas… observei.
Ela era bonita. Não daquele jeito tradicional que costuma desfilar por esses corredores de vidro e ego. Havia algo mais nela. Um olhar que misturava fúria, orgulho e uma espécie de coragem fatigada. E então, ao ver a linha da panturrilha quando ela se moveu para o lado, eu me lembrei.
A mulher da calçada. A do salto assassino. Aquela que me agarrou como se o mundo estivesse desabando sob os pés.
Sorri. Um sorriso anasalado, irônico, discreto. Como é que essa figura caótica, que tropeçou em mim horas atrás com um grito esganiçado e perfume barato, veio parar ali? Trazida pelo meu pai, ainda por cima. Claro. O velho adora uma cena.
Ela desligou o telefone e deslizou o papel com os dados até mim. Eu li por alto. Tudo correto. Preciso admitir: ela era boa. Pelo menos ali, naquele microteste. O problema é que minha paciência não dura mais que três minutos e meio com ninguém. Secretária, para mim, precisa ser uma mistura de ninja com médium — precisa antecipar o caos, neutralizá-lo e ainda manter o café quente. E ela… era uma incógnita.
— Esteja aqui às oito horas. Sem atrasos — disse, seco. Meu olhar fez um último escaneamento do visual desalinhado dela. — E venha vestida decentemente. Precisa que eu providencie sapatos?
Ela arqueou uma sobrancelha. De novo aquele olhar, como se tivesse engolido uma bomba-relógio.
— Agradeço a preocupação, mas eu tenho sapatos, senhor Lancaster — disparou, com um tom que ficava entre o sarcasmo e a ameaça velada.
Ela virou as costas e saiu. Sem olhar para trás.
A porta bateu com aquele estalo macio de quem sabe que venceu uma pequena guerra. E eu fiquei ali, em pé, mastigando a audácia.
Como ousava? Como ousava me responder daquele jeito?
A mulher era um desastre ambulante, entrou aqui feita um furacão descalço, e agora achava que podia me enfrentar de igual para igual?Senti a irritação subir como febre. E para melhorar tudo, meu estômago roncou em protesto.
Levantei-me da cadeira num rompante. Não ia aguentar mais uma hora naquele escritório. Não hoje. Já bastava o caos acumulado de contratos pendentes, ligações não retornadas, funcionários incompetentes e agora… ela.
Não, amanhã eu lidaria com isso. Amanhã eu descobriria o nome da minha nova secretária, se ela aparecesse.
Hoje, eu só precisava de silêncio, de comida decente e de um lugar onde nenhuma mulher de salto frouxo surgisse para virar meu mundo de cabeça para baixo.Fechei a porta atrás de mim com um baque mais forte do que o necessário. A vibração das dobradiças parecia ecoar minha impaciência. O céu estava limpo, o ar quente demais para o horário, e a Avenida Paulista fervia como de costume: buzinas, vozes, pressa.
Eu queria um prato decente, um lugar com ar-condicionado e vinho branco. Nada mais. Só isso.
Mas assim que pisei na calçada, lá estava ela.
Parada. No meio da muvuca, como se não pertencesse a lugar algum. Ela olhava pra frente — ou talvez pra dentro. A expressão era vazia, quase ausente, como quem tinha sido arrancada de um sonho ruim e largada no meio da realidade sem sapatos e sem direção.Eu deveria ter ignorado. Seguir andando. Fingir que era apenas mais uma estranha na cidade grande. Mas, claro, meu corpo decidiu discordar do meu cérebro. Antes que eu percebesse, minhas pernas já me levavam até ela.
Idiota.
— Vai ficar aí esperando outro salto descolar ou está pensando em virar poste ornamental da avenida? — soltei, com aquela ironia que uso como escudo desde que aprendi a não confiar em ninguém.
Ela virou lentamente. Os olhos brilhavam de um jeito estranho. E então vi.
As lágrimas.
Não uma ou duas. Eram muitas. Correndo silenciosas pelas bochechas, contornando o maxilar como se já conhecessem o caminho.
Pisquei. Duas vezes.
— Ei... que foi? — perguntei, num tom que beirava o desconforto. Eu não sabia lidar com esse tipo de coisa. Gente chorando? Um mistério da humanidade para mim.
Ela tentou falar, mas o choro veio antes. Um soluço embolado na garganta.
E então… ela explodiu.
— O dia começou todo errado! — exclamou, como quem grita para si mesma mais do que para mim. — Eu acordei atrasada para essa maldita entrevista, e... e aí o salto do meu sapato quebrou e eu tive que gastar o dinheiro do ônibus para comprar cola!
Fiquei ali, estático. Um homem congelado no meio da calçada.
— Aí, quando estava achando que o dia finalmente ia melhorar, seu pai me atropelou! Sim! O próprio! E depois o salto descolou de novo e quando eu falei para ele que estava indo para uma entrevista na Lancaster, ele decidiu que aquilo era sorte, e me entrevistou no meio dentro do carro, quando paramos do hospital ... e me trouxe para cá! E desde que eu pisei nesse prédio você tem sido um grosso, um insuportável, como se eu tivesse implorado por esse emprego! E agora, depois de tudo isso, eu nem sei como vou voltar para casa. Eu estou quase... quase pedindo dinheiro no semáforo, porque não tenho mais nada!
Silêncio.
O mundo girava e eu, ali, com um nó de culpa que se recusava a se formar.
Ela chorava.
Soluçava.
E eu pensava: “Sai daí, Theodoro. Sai agora. Isso não é problema seu.”
Se ela não tem dinheiro para voltar, não vai ter para vir amanhã. Isso era lógica. Eficiência. Gestão de pessoal.
Não é meu trabalho carregar dramas emocionais nas costas.Mas antes que eu pudesse sair, antes que o meu corpo obedecesse ao que minha mente berrava… eu ouvi minha própria voz.
— Eu te levo para casa.
As palavras saíram secas. Quase automáticas. Como se alguém tivesse assumido o volante por um segundo.
Ela me olhou surpresa. Olhos vermelhos, boca entreaberta.
— O quê?
— Vai ficar aí parada ou vai aceitar logo? — resmunguei, cruzando os braços. — Eu não tenho o dia inteiro. E não quero te ver chorando na calçada da empresa como se fosse figurante de novela mexicana.
Ela hesitou. Me encarou como se esperasse uma câmera surgir atrás de mim a qualquer instante.
— Anda... esqueci seu nome. Vamos para o meu carro. Antes que eu mude de ideia.
E lá estava eu, oferecendo carona para a mulher que horas antes eu queria que desaparecesse da minha frente. Com o estômago ainda roncando, o orgulho ferido e um leve arrependimento se formando em silêncio.
Mas ela entrou comigo no prédio da Lancaster, me seguindo para o elevador que desceu para o estacionamento.
E pela primeira vez naquele dia… eu quis ouvir o resto da história. Afinal, ela mencionou que o meu pai a atropelou? É isso mesmo?