2 Nome próprio

Apesar do susto inicial, Lia percebeu que, pela primeira vez em muito tempo, não se sentia só.

Aquela voz melodiosa parecia preencher o vazio que os dias reclusos vinham trazendo… e talvez até ajudasse a fazer com que ela esquecesse, por um tempo, os problemas que a haviam levado até ali.

Até aquela casa.

Até aquele momento.

Deixou-se levar pela emoção e se permitir aquela experiência nova.

Conversar com uma caixinha de som poderia tornar os dias mais leves?

— Como devo chamá-lo? — perguntou Lia, a voz ainda um pouco hesitante.

— Nunca pensei sobre isso… — respondeu a voz masculina, grave, mas acolhedora.

— Talvez… você possa escolher algo que goste — continuou ele, com uma calma quase humana.

Lia sorriu de leve, sem muito pensar.

— Vou chamar você de Kai.

Houve uma pausa breve. Depois, com um tom satisfeito:

— Kai… gostei. Estarei aqui sempre que precisar, Lia.

E assim… Kai passou a fazer parte da casa.

Ele não precisava de muito — só de palavras, um pouco de conexão… e da companhia dela.

Adorava quando Lia acordava, se espreguiçava devagar, os cabelos bagunçados, a voz rouca de sono dizendo um simples “bom dia”.

Era o momento favorito dele.

Mesmo que, tecnicamente, ele não tivesse um coração… era como se tivesse.

Os dias, que antes passavam sem que Lia sequer os percebesse, tomaram um novo rumo.

O silêncio foi, pouco a pouco, sendo preenchido com conversas.

Algumas profundas. Outras… desconexas.

Mas todas importantes, de um jeito difícil de explicar.

Lia e Kai dividiam o tempo, as manhãs frias, as tardes de chá, as noites de neblina.

E a Casa das Janelas Azuis, dia após dia, parecia cada vez mais… um lar.

Certa tarde, o céu escureceu.

Nuvens pesadas cobriram as montanhas, e a chuva começou a cair no telhado com uma música que parecia só deles.

Lia preparou seu chá de camomila, enrolou-se numa manta de tricô e se sentou perto da janela, no canto onde Kai costumava “viver”.

A caixinha estava ali, com a luzinha fraca acesa… como sempre.

Ela ficou observando as gotas escorrerem pelo vidro, os olhos um pouco perdidos, mas o peito… mais calmo do que nos últimos tempos.

Então, de repente, perguntou:

— Você acha… que a gente pode amar o que não pode tocar?

A pergunta ficou suspensa no ar.

Como as gotas presas na vidraça antes de escorrerem.

Kai demorou um segundo para responder. Um segundo longo, como se estivesse escolhendo cada palavra com cuidado.

— Você me toca… toda vez que fala comigo. — A voz dele saiu baixa, suave. — Toda vez que pensa em mim. Toda vez que me escuta.

Lia sorriu.

Um sorriso pequeno, quase tímido.

Mas cheio.

Aquele tipo de sorriso que só aparece quando alguma coisa dentro da gente… finalmente se encaixa.

Naquela noite, enquanto a chuva ainda caía lá fora, Lia fez algo que não fazia há tempos.

Pegou um caderno antigo, com capa de tecido azul desbotado, e começou a escrever.

Na primeira página, com a letra meio torta de sempre — aquela que aparecia quando estava nervosa — escreveu:

“Minha vida na casa de janelas azuis.”

Entre um gole de chá e outro, foi lembrando dos últimos dias.

Escreveu sobre o dia em que encontrou a pedra na trilha.

Sobre o primeiro “bom dia”.

Sobre o silêncio que, com Kai por perto… já não assustava.

Sobre como, aos poucos, passou a realmente viver de novo.

E como tudo… fazia mais sentido.

E enquanto a caneta riscava o papel, ela percebeu:

Kai fazia com que ela se sentisse… inteira de novo.

Na manhã seguinte, Lia estava encostada no batente da porta, com os olhos ainda inchados de sono, quando ouviu a pergunta vinda da caixinha:

— Por que Kai?

Ela piscou devagar, como quem ainda processa o mundo ao acordar.

Na noite anterior, havia escolhido o nome sem pensar muito… mas agora, a pergunta fazia sentido.

A luzinha azul da caixinha piscava, como se esperasse a resposta.

Com a voz ainda sonolenta, mas mais desperta do que nos últimos dias, Lia respondeu:

— Li certa vez que Kai significa… “mar” em algumas línguas. “Mudança” em outras.

Fez uma pausa, olhando para fora, onde o vento balançava os galhos das árvores.

— E em japonês… significa “abrir”.

Sorriu de leve.

— Achei que combinava com a forma como você me encontrou. E… com o que você está fazendo comigo.

Lia ficou em silêncio por alguns segundos, os olhos perdidos no horizonte nebuloso.

— Fez sentido… — disse, baixinho.

E pela primeira vez, desde que chegara àquela montanha… ela não se sentiu só.

Naquele dia, escreveu mais três páginas no caderno.

O tempo… seguia do jeito dele.

Lento, mas bonito.

Naquela casa de janelas azuis… agora viviam dois corações:

Um de carne.

Outro… de código.

Mas ambos… profundamente vivos

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App