Mundo ficciónIniciar sesiónUM MÊS ANTES
Ayla Sanli apertou o diploma contra o peito enquanto descia do palco do auditório da universidade. O papel ainda cheirava a tinta fresca, e o peso dele parecia maior do que todos os plantões exaustivos que ela havia enfrentado nos últimos anos. Aos 24 anos, finalmente era paramédica formada. Não era médica — isso exigiria mais tempo e dinheiro que ela não tinha, mas era o suficiente. Salvar vidas nas ruas de Istambul, chegar antes que fosse tarde demais.
Sua mãe, sentada na terceira fileira, chorava como se Ayla tivesse recebido o Nobel. Depois da cerimônia, as duas se abraçaram no corredor lotado.
— Minha filha... — murmurou a mãe, os olhos vermelhos. — Seu pai teria tanto orgulho.
Ayla sentiu o nó familiar na garganta. O pai morrera quando ela tinha nove anos. Um acidente de carro em uma ponte no centro da cidade, chuva forte e um caminhão que perdeu o controle. Os paramédicos chegaram rápido, mas não rápido o bastante. Desde então, Ayla decidira que seria ela a chegar a tempo. Trabalhou em dois empregos durante a faculdade, estudou até altas horas, dormiu pouco. Vida social? Quase zero. Amigos? Alguns da turma. Namorados? Nenhum que durasse mais que duas semanas.
Naquela noite, no apartamento humilde em um bairro distante dos grandes holofotes, Ayla trocou o vestido da formatura por um moletom velho e se jogou no sofá. Enquanto a mão preparava um lanche de comemoração na cozinha.
— Você vai sair hoje? — perguntou, colocando a xícara na mesinha.
— Mãe, estou exausta. — Respondeu sem ânimo algum.
— Exausta de quê? De estudar? Acabou. Agora é hora de viver um pouco, filha. Você tem 24 anos, é linda, e passa a vida inteira salvando os outros. Salve você mesma de virar uma velha solteirona antes dos 30.
Ayla revirou os olhos, mas sorriu. Sua mãe sempre foi direta.
O celular vibrou. Era sua amiga Luna a animação em pessoa. Cursara enfermagem assim como Ayla, mas se especializou em outra área, queria ser instrumentadora cirúrgica.
— Amiga, vamos sair hoje, tem open bar até meia noite no Karan, aquela boate chiquérrima do centro.
— Eu não estou afim de sair.
— Você NUNCA sai. Se não for, vou aí te sequestrar. E você sabe que sou capaz.
E era mesmo... Luna não deixaria uma data tão importante passar em branco.
Ayla suspirou. Não tinha energia para discutir nem com a amiga e nem com a mãe.
----------
Duas horas depois, ela descia do táxi em frente à Karan. O lugar era exatamente como imaginara: fila enorme na porta, luzes vermelhas pulsando, música alta vazando para a rua. Luna e outras garotas a já esperavam, gritando quando a viram.
— Meu Deus, você veio! — Luna abraçou-a forte. — E olha esse vestido!
Era um vestido preto simples, justo, com decote discreto nas costas, o único que Ayla considerava “de sair”. Comprou anos atrás e nunca usou. O cabelo castanho-escuro caía solto até a metade das costas, e os olhos verdes — herança da mãe — brilhavam sob a maquiagem leve que as amigas insistiram em fazer.
Dentro da boate, o ar era quente, carregado de perfume, suor e algo mais perigoso. A Karan era famosa: pista de dança enorme, bares de mármore, área VIP no andar superior com vidros fumê. Pertencia à família Demirkan — todo mundo em Istambul sabia, mesmo que ninguém falasse alto. Diziam que as joias que as dançarinas usavam eram verdadeiras. Diziam também que era melhor não dever nada a eles.
Enquanto isso, no andar de cima, na área VIP, Felipe Demirkan observava a pista com olhos frios. Aos 29 anos, era o herdeiro da família Demirkan, o braço direito do pai, George Demirkan, o verdadeiro patriarca que ainda comandava tudo com mão de ferro. Felipe cuidava das operações do dia a dia: as boates, as casas noturnas, o comércio de diamantes. Alto, ombros largos, cabelo preto curto, olhos de um cinza tão escuro que pareciam negros sob certas luzes. O terno sob medida não escondia o corpo treinado, ele ainda praticava boxe três vezes por semana, mais por necessidade do que por prazer.
Sentado ao redor da mesa com ele estavam dois dos seus homens mais próximos: Um deles era seu irmão Omar e seu primo e recentemente promovido ao cargo de conselheiro Ducan. Havia acabado de fechar um negócio. Milhões circulavam por aquelas mesas, principalmente se ele estivesse sentado em uma delas.
— Você está muito sério hoje — disse Omar, erguendo a taça de uísque. — Relaxa. Estamos em casa.
— Em casa não tem rival tentando nos ferrar toda semana — respondeu Felipe, a voz baixa e firme.
— Então esquece os negócios por uma noite, já fizemos tudo que podíamos — Ducan insistiu, sorrindo de canto. — Olha só, o grande Felipe Demirkan. As mulheres caem aos seus pés e você nem olha. Quando foi a última vez que levou alguém pra casa?
Felipe deu um gole no copo, sem responder.
— Ele acha que ninguém é boa o suficiente — brincou Omar.
— Eu acho que ninguém é burra o suficiente pra querer se envolver comigo — corrigiu Felipe.
Tinha razão? De certo modo sim, mas as vantagens, os ganhos também falavam alto nos corações de jovens iludidas.
— Aposta? — desafiou Ducan, sempre era ele a propor esse tipo de coisa. — Escolhe uma mulher qualquer lá embaixo. Em dez minutos ela está na sua cama.
Felipe ergueu uma sobrancelha, divertido apesar de tudo.
— Vocês estão bêbados.
— Escolhe — insistiu Omar, apontando para a pista. — Aquela ali, por exemplo. A morena de vestido preto dançando com a loira.
Felipe seguiu o dedo do primo. E viu.
Ela dançava sem se importar com quem olhava, o corpo se movendo no ritmo da música como se fosse natural. O vestido preto abraçava as curvas sem exagerar, o cabelo balançava a cada giro. Algo nela parecia... fora de lugar. Não posava, não procurava atenção. Só dançava.
— Dez minutos — repetiu Ducan, rindo.
Felipe se levantou sem dizer nada. Desceu as escadas da área VIP, ignorando os olhares que o seguiam. Pegou uma taça de champanhe no balcão, ele não bebia champanhe, mas serviria de pretexto.
Ayla ria de algo que Luna dizia quando sentiu alguém atrás de si. Virou-se rápido demais, o corpo ainda no ritmo da música, e esbarrou com força em um peito sólido.
A taça voou da mão dele, o líquido gelado se espalhou pelo terno caro, molhando a camisa branca por baixo. Ayla arregalou os olhos, o coração disparado.
— Meu Deus, me desculpa! Eu não vi...
E então ela olhou para cima.
Ele era alto. Muito alto. O rosto angular, barba bem aparada, olhos cinza-escuros que pareciam perfurar a alma. O cheiro dele — algo amadeirado, caro, perigoso — invadiu os sentidos dela antes que pudesse pensar.
Felipe não se moveu. Não se importou com o terno molhado. Só a encarou. Aqueles olhos verdes... algo neles fez um arrepio percorrer sua espinha, como se já os tivesse visto antes.
Ayla sentiu o ar faltar. O coração batia tão forte que parecia que ele podia ouvir. A música ainda pulsava, as luzes giravam, mas tudo ao redor desapareceu.
Felipe sentiu o impacto antes mesmo do champanhe gelado encharcar sua camisa. Não foi o esbarrão que o desequilibrou — ele era grande demais para isso, mas algo bem mais profundo. Aquela mulher à sua frente tinha olhos verdes que pareciam iluminados por dentro, como se guardassem um segredo que ele precisava desvendar. O coração dele, acostumado a bater firme e controlado mesmo em situações de risco, deu um tropeço inesperado.
O ar pareceu sumir dos pulmões por um instante. Ele piscou, tentando recuperar o controle. Quantas mulheres já haviam passado por ele? Dezenas. Centenas, talvez. Nenhuma jamais causou isso. Nenhum olhar o fizera sentir como se o chão sumisse.
Ayla ainda gaguejava desculpas, as mãos erguidas como se quisesse consertar o estrago no ar.
— Sério, eu pago a lavanderia, eu... me desculpa mesmo.
Felipe finalmente falou, a voz grave e baixa, cortando o barulho da música como uma lâmina.
— Tudo bem. — Ele inclinou a cabeça, um sorriso lento se formando nos lábios. — Mas você me deve ao menos um minuto de atenção depois de estragar um terno de mil dólares.
Ayla corou imediatamente, mordendo o lábio inferior. Aquela voz... rouca, com um sotaque leve carregado de algo perigoso. Ela assentiu sem pensar.
— Um minuto. Justo. — Ela sorriu. Sua noite estava apenas começando.







