capítulo 4 Helena

Narrado por Helena Ferraz

O amanhecer parecia hesitante, sem coragem para se revelar. O céu apresentava um tom cinza, indeciso, e o ar estava pesado, tornando aquela manhã qualquer em algo extraordinário. Acordei com o coração palpitando de maneira errada não era ansiedade, tampouco medo. Era algo indefinido, um presságio silencioso e gelado que sussurrava em meu interior: algo não está certo.

Virei-me na cama e estendi a mão para tocar o lençol ao lado. Ele estava vazio. O travesseiro ainda mantinha a forma do corpo de Dante, e o seu perfume parecia flutuar ao meu redor, como uma lembrança teimosa que se recusava a ir embora.

Levantei-me devagar, e o silêncio da casa soava diferente denso, como se cada parede estivesse segurando a atmosfera, evitando que qualquer som se propagasse. Caminhei pelo corredor lentamente, sentindo meu coração apertar a cada passo que dava.

Ao chegar à porta do quarto de Matteo, percebi que estava entreaberta. Empurrei-a com cuidado.

Meu pequeno dormia tranquilamente, seu corpinho estendido sobre a cama, com o ursinho marrom abraçado aos braços e a boca entreaberta, soltando um sopro leve. Acariciei seus cabelos desgrenhados, bagunçando-os gentilmente, e beijei sua testa.

Ele suspirou, um som inocente que, por um breve momento, trouxe um sorriso ao meu rosto. Mas era um sorriso frágil, efêmero, carregado de um medo disfarçado.

Retornei para o quarto e peguei o celular que estava em cima do criado-mudo. A tela iluminou o escuro ao meu redor.

Não havia mensagens. Nenhuma chamada.

A última mensagem era dele, enviada algumas horas antes do embarque:

“Já com saudade. Te amo. Dá um beijo no Matteo por mim.”

E a minha resposta ainda estava ali, como uma ironia cruel:

“Também te amamos. Vai com Deus. Daqui a pouco você tá de volta.”

Mas o “daqui a pouco” já havia ultrapassado seu tempo. A ausência dele estava começando a cheirar diferente um cheiro de vazio, de espera, de um medo que se acumulava no estômago.

Tentei me distrair. Fui até a cozinha, liguei o fogo e coloquei água para ferver. O som do gás ao se acender me pareceu exageradamente alto. Peguei a caneca, mas minha mão tremia.

Foi nesse momento que o telefone fixo tocou.

Um toque. Dois. Três.

O som cortou o silêncio da casa como uma lâmina afiada.

Atendi, prendendo a respiração.

— “Alô?”

— “É a senhora Helena Ferraz, esposa do senhor Dante Ferraz?”

A voz do outro lado soava profissional, gelada.

Senti um arrepio percorrer meu corpo.

— “Sim… sou eu. Por quê?”

Houve uma pausa inquietante, seguida de um suspiro.

— “Estamos ligando da companhia aérea. Infelizmente, precisamos informar que o voo 374, com destino a São Paulo, sofreu um acidente. As equipes de resgate já estão no local, mas ainda não temos informações completas sobre os sobreviventes.”

Foi como se o mundo tivesse simplesmente... desligado.

Os sons do vento, do fogo no fogão, o tic-tac distante do relógio tudo desapareceu.

O chão parecia me engolir. Minhas pernas fraquejaram, e o telefone escorregou de minha mão, pendurado pelo fio, balançando como um corpo sem vida.

Sentei-me no chão. Minhas mãos cobriram meu rosto. E então, o grito veio.

Um grito mudo.

A dor não se manifestou em som mas em tremor, em respiração acelerada, em desespero.

Os passos a ecoar pelo corredor trouxeram Caio, descalço, com o cabelo bagunçado e o rosto pálido.

— “Helena! O que foi? O que aconteceu?!”

Tentei articular palavras, mas minha voz não respondia. O ar parecia escasso. Consegui apenas sussurrar, trêmula:

— “O avião... o avião caiu...”

Ele me segurou pelos ombros, firme, tentando me trazer de volta à realidade.

— “Como assim, caiu?! O Dante... o Dante estava nesse voo?”

Assenti. Uma lágrima escapuliu, pesada e quente, antes mesmo que eu conseguisse responder.

— “Eles não sabem se há sobreviventes...” — murmurei.

Caio ficou imóvel por alguns segundos, seu olhar perdido e distante. Então se ajoelhou diante de mim, puxando-me para um abraço. Poder sentir seu peito tremular junto ao meu trouxe uma conexão inesperada.

— “Ele vai voltar, Helena. Eles vão encontrá-lo, você vai ver. O Dante é forte.” — dizia ele, como se tentasse acreditar em suas próprias palavras.

Mas o vai voltar soava frágil, como papel molhado.

O tempo parecia ter parado naquele ambiente.

O sol começou a surgir, tingindo as janelas com uma luz amarelada, quase cruel. Matteo, do quarto, começou a chorar. Seu choro era baixo e arrastado, e eu sabia que era apenas o início de uma tempestade.

— “Eu vou.” — disse Caio, levantando-se rapidamente e correndo até o quarto.

Fiquei ali, sentada no chão frio da cozinha, ouvindo os sons da acolhida de meu filho por outro homem. Um som que partia meu coração, mas que, de alguma forma, também me mantinha viva.

Caio retornou com Matteo nos braços, balançando-o suavemente na tentativa de fazê-lo parar de chorar. O menino olhou para mim, os olhinhos ainda inchados de sono.

— “Mamãe… papai?”

Engoli em seco.

A pergunta penetrou em mim como uma lâmina cortante.

Caio trocou um olhar comigo. Estávamos os dois em silêncio, presos na mesma impotência.

Ele se abaixou, aproximando Matteo de mim.

— “Aqui, ele quer você.”

Recebi meu filho em meu colo, e no instante em que o abracei, pareceu que minha alma retornava ao meu corpo. Senti seu cheirinho, quente e doce, e meu coração se despedaçou novamente.

— “Ele vai voltar, meu amor…” — menti, sussurrando contra o cabelo do meu filho. — “Papai sempre volta.”

Caio permaneceu de pé, inquieto, o celular na mão.

— “Vou ligar para a companhia, para o hospital, para quem for preciso. Eles precisam nos dar alguma informação.”

Assenti, incapaz de encontrar palavras.

O tempo parecia se arrastar, cada segundo se estendendo como uma eternidade. Matteo adormecia em meus braços, sua respiração tranquila era um lembrete constante de que eu precisava ser forte. Eu precisava continuar por ele.

Então, o telefone tocou novamente.

O mesmo toque insistente. O mesmo impacto.

Caio, empolgado, correu para atender.

— Alô?

Do outro lado, um silêncio breve, quase insuportável.

Em seguida, a voz começou, baixa e arrastada, como se cada palavra carregasse um peso imenso.

— Sim... sou eu.

— Ele está vivo?

Senti meu corpo inteiro paralisar.

Caio permaneceu em silêncio, os segundos se arrastando até que os olhos dele se enchessem com algo que eu nunca conseguirei esquecer: pena.

— Entendo. — ele respondeu, a voz vacilando. — Obrigado por avisar.

Desligou.

Virou-se em minha direção, com o rosto pálido e as mãos tremendo.

— Era o hospital.

Naquele momento, meu coração pareceu parar por um instante.

— Caio...

Ele inhalou profundamente, como se se preparasse para o que viria a seguir.

— Eles confirmaram. O Dante... ele não resistiu.

O chão sob meus pés desmoronou.

Tudo desabou.

Meu corpo, minha mente, a crença que ainda guardava.

Eu desabei de joelhos, segurando Matteo em meus braços. O choro irrompeu de mim, rasgando a malsinada tranquilidade, até que minha voz se extinguisse em meio aos soluços.

Caio me envolveu por trás, seus braços me seguravam firmemente, tentando evitar minha queda total. Mas, mesmo assim, o colapso inevitável aconteceu.

Só conseguia repetir entre os gemidos:

— Não... não ele... ele prometeu...

Caio não disse nada. Apenas me apertou mais contra ele, o rosto escondido em meu ombro, compartilhando minha dor silenciosa.

E ali, naquele chão gelado, com o corpo do meu filho entre nós e meu coração despedaçado, compreendi a parte mais dolorosa de perder alguém que se ama:

Não é o silêncio que vem após a perda.

Não é o processo de luto.

É continuar a viver, a respirar, quando tudo dentro de você grita para que você pare.

E assim nasceu o sol naquele dia

uma testemunha muda de um amor que foi levado ao céu antes de seu tempo.

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