Mundo de ficçãoIniciar sessãoCapítulo: Turbulências
O processo de embarque ocorreu de maneira rápida. Demais, na verdade. Desde sempre, aeroportos me provocam uma sensação estranha, um misto de fim e começo simultaneamente. É um local em que despedidas se confundem com reencontros, onde a saudade e a esperança coexistem, lado a lado, no mesmo portão de embarque. Eu me sentei ao lado da janela, um hábito quase supersticioso que mantenho. Aprecio ver o mundo se tornando cada vez menor sob meus olhos, sinto prazer na ideia de estar acima das nuvens. É como se aquela pequena janela me proporcionasse uma ilusão de controle sobre a situação. Contudo, naquela madrugada, um sentimento de desconforto se instalava dentro de mim, algo que não parecia estar certo. As luzes da pista cintilavam como vaga-lumes organizados, e o rugido familiar dos motores transmitia uma sensação de familiaridade e até mesmo um toque de conforto. Observei os funcionários no solo acenando com suas lanternas, as bagagens sendo carregadas para o avião, enquanto um outro voo se preparava para decolar logo ao lado. Tudo parecia normal mas meu coração teimava em expressar o contrário. Com as mãos um tanto trêmulas, peguei o celular, que ainda tinha sinal, e enviou minha última mensagem para Helena: > “Já com saudade. Te amo. Não esquece de dar um beijo no Matteo por mim.” A resposta veio em questão de segundos: > “Nós também te amamos. Vai com Deus. Logo você está de volta.” Soltei um suspiro profundo. Um daqueles suspiros que parecem abarcar o peso de algo que ainda não ocorreu. Guardei o celular, ajuste o cinto e apoiei a cabeça no encosto da poltrona, tentando me convencer de que aquela inquietação era, na verdade, apenas resultado do cansaço acumulado. A viagem seria breve, um salto rápido para resolver um acordo pendente algo que eu já havia feito inúmeras vezes. O avião iniciou a táxi lentamente, lembrou-me um gigantesco animal preparando-se para saltar. Gradualmente, acentuamos a velocidade e, quando as rodas finalmente se desprenderam do solo, aquele frio na barriga, sempre presente nas decolagens, me acompanhou. A cidade foi ficando para trás em segundos, suas luzes se dissolvendo em uma tapeçaria de pontos brilhantes. Respirei fundo. O caminho estava à frente. Dentro da cabine, logo a calma predominou, típica de voos. Os cintos foram liberados, e os comissários começaram o serviço. Pedi um café, não realmente por necessidade, mas por hábito. Ao meu redor, os passageiros se ajeitavam para conseguir dormir; alguns já haviam colocado fones de ouvido, imersos nos seus filmes ou músicas. A senhora ao meu lado já sonhava acordada, enrolada em um lenço de tricô e o suave perfume de lavanda. Mas eu… eu não conseguia relaxar. Não era medo de voar. Era algo diferente. Um incômodo sutil cutucava minha mente. Uma lembrança do olhar de Caio quando me despedi dele naquela manhã. Algo ali o perturbava. Uma hesitação, uma sombra atravessando seu rosto, como se estivesse prestes a me revelar um segredo, mas decidisse não contar no último instante. Ou talvez fosse apenas a minha mente criando preocupações onde não existiam. Quarenta minutos se passaram. Quando menos esperei, a voz do comandante interrompeu a sonoridade ambiente. Sua entonação era calma. Controlada. Demais. — “Senhores passageiros, aqui é o comandante. Estamos enfrentando uma pequena falha técnica e vamos iniciar os procedimentos para retorno ao aeroporto de origem, por precaução. Mantenham os cintos afivelados e sigam as orientações da tripulação. Está tudo sob controle.” A forma como articulou essas palavras era a de alguém que havia repetido a frase inúmeras vezes. Entretanto, a palavra falha permaneceu ecoando em minha mente, como um mantra inquietante. Falha técnica? Voltei meu olhar para a janela. O céu estava coberto por nuvens. Não havia sinal de tempestade, nada que justificasse um retorno. O voo parecia, até então, estável. Mesmo assim, a informação se fixou em mim como algo indesejável. O clima dentro do avião alterou-se de maneira sutil. Olhares se encontravam, cheios de curiosidade. Algumas pessoas se endireitaram nas poltronas, um casal duas fileiras à frente começou a trocar cochichos nervosos. E, mesmo que ninguém verbalizasse, todos compartilhavam o mesmo pensamento: algo não estava bem. As comissárias reapareceram, ainda com sorrisos, mas agora com passos mais ágeis. Elas reforçavam que se tratava apenas de um procedimento padrão, mas os olhos delas contavam uma história diferente. O silêncio tomou conta da cabine. Era como se todo o ar tivesse sido retirado do espaço. O ruído das turbinas era a única âncora que nos mantinha conectados à realidade. O homem à minha frente começou a rezar baixinho, deslizando os dedos trêmulos por um terço. Uma criança começou a chorar, e a mãe, tentando disfarçar o medo, teve sua voz involuntariamente elevada. Meu peito começou a se apertar. E se…? Tentei empurrar essa ideia para longe. Respirei fundo, lembrei de Helena no portão de embarque, com olhos cheios de amor e sono. Lembrei de Matteo gritando papai! Fechei os olhos e fiz uma oração, não por mim, mas por eles. Então, o primeiro solavanco aconteceu. Nada demais inicialmente, essa era apenas a turbulência habitual que um avião poderia enfrentar. Contudo, logo veio outro, e depois mais um, mais forte. Logo, uma sirene abafada ecoou vindoura da cabine dos pilotos. Uma luz vermelha começou a piscar acima de nossas cabeças. Nesse instante, não havia mais como disfarçar a tensão. A comissária que estava próxima à minha fileira perdeu o sorriso, segurou-se firme no apoio e lançou um olhar aos colegas, como se aguardasse ordens. O avião sofreu um solavanco violento, e a cabine foi imediata e caoticamente preenchida por objetos que se desprendiam dos compartimentos superiores. A mulher ao meu lado, num ato de desespero, agarrou meu braço com força, seus olhos refletindo um terror absoluto. Eu me mantenho em silêncio, sem palavras que pudessem confortá-la, apenas fixando meu olhar na janela, testemunhando como o chão se aproximava de maneira alarmante. A descida, que deveria ser controlada e segura, agora se revelava uma luta desesperada pela sobrevivência. As luzes da aeronave piscaram uma última vez antes de se apagarem completamente, mergulhando-nos em uma escuridão opressora. Para aqueles segundos que pareciam se arrastar eternamente, estávamos envolvidos por um vazio absoluto, interrompido apenas pelo barulho ensurdecedor e crescente das turbinas e pelo estrondo metálico de uma estrutura sendo forçada a limites insuportáveis. O medo pairava no ar denso como uma sombra. Um odor intrusivo penetrou a cabine, intenso e sufocante. Era um cheiro de queimado, de plástico derretendo, de combustível. Um prenúncio do desastre prestes a ocorrer. Então, como um pesadelo que se concretiza, veio o impacto. O mundo inteiro desabou em frações de segundos. O avião tocou o solo de lado, como um gigante desequilibrado que tropeça, perdendo o controle. Ele derrapou e rodopiou, arrastando-se pela terra como um animal ferido em seus últimos momentos de luta. O estrondo das ferragens se despedaçando era ensurdecedor; o alarido de gritos e estalos era uma sinfonia de pânico. Vidros estouraram, objetos voaram descontroladamente, e bagagens se chocaram contra os corpos dos passageiros. Partes do teto cederam, criando uma atmosfera de caos absoluto. Eu fui lançado contra o assento à minha frente. O cinto de segurança foi meu único aliado, segurando-me com firmeza, mas quase deixando-me escapulir. A dor atravessou meu corpo como uma lâmina cortante. Minha cabeça pulsava intensamente, enquanto uma sensação de queimação se espalhava pelo meu peito. A fumaça densa dificultava minha respiração, e tudo ao redor se tornava uma confusão irreal, violenta e aterrorizante. Uma explosão repentina à minha esquerda iluminou a cabine com uma luz intensa. A asa da aeronave havia se partido e colidido com algum objeto indeterminado. Uma bola de fogo atravessou rapidamente o corredor, trazendo consigo uma onda de calor que queimou meu rosto. As máscaras de oxigênio caíram do compartimento, mas muitas delas estavam derretidas, tornando-se completamente inúteis em meio ao caos. Senti o impulso de soltar o cinto de segurança. Esforcei-me para me levantar, minha mente gritando por uma saída, uma maneira de escapar daquela situação desesperadora. Mas, para minha frustração, meu corpo parecia não obedecer mais, como se tivesse se tornado uma massa pesada, incapaz de se mover. Meus braços, antes ágeis e fortes, estavam agora grotescamente pesados. Os sons ao meu redor começaram a se apagar gradativamente, como se alguém estivesse girando a manete de um equipamento de áudio para reduzir o volume. Até mesmo os gritos apavorados das outras pessoas se tornaram ecoantes e distantes, como se estivessem submersos em água. Desesperadamente, olhei pela janela uma última vez. O cenário que se desenhava diante de mim era aterrador. Vi as chamas devorarem tudo à sua volta vi o fogo, vi a devastação que nos cercava. A sombra da asa da aeronave, antes imponente, agora era engolida pelas línguas de fogo, consumida pela destruição. E então, num instante, tudo se transformou em um branco ofuscante. A cena ao meu redor se tornou um clarão ofuscante e, de repente, o silêncio absoluto tomou conta, como se o mundo inteiro houvesse sido desligado de uma vez. Minha cabeça tombou pesadamente para o lado, enquanto meus olhos se fecharam sem que eu pudesse resistir. Naquele momento final, a última coisa que passou pela minha mente foi um pensamento angustiante: “Helena… Matteo…” E depois disso, como se uma cortina tivesse sido puxada, perdi a consciência. Apaguei.






