Mundo ficciónIniciar sesiónCapítulo 2 — Recomeços e Silêncios
Narrado por Dante Ferraz O relógio indicava 4h58 quando finalmente fechei a última mala. O som do zíper se fechando ecoou pela casa silenciosa, e naquele momento, uma sensação poderosa me dominou era como se todo o meu ser soubesse que algo havia mudado para sempre. O ar da madrugada estava frio e úmido, carregando uma certa densidade que parecia penetrar até os pensamentos mais profundos. Do lado de fora, a cidade permanecia mergulhada em um sono profundo. O único som que se fazia ouvir era o distante ruído de um caminhão passando e o canto de um passarinho solitário. Era um tipo de silêncio que, embora poético, trazia consigo uma indescritível dor. Direcionei meu olhar ao redor. A sala ainda exibia os resquícios do nosso cotidiano: o aroma persistente de café misturado ao perfume de Helena. O cobertor amassado sobre o sofá, os brinquedos do Matteo espalhados pelo chão, o casaco dela jogado descuidadamente na cadeira. Pequenos detalhes que faziam a casa parecer viva, apesar da escuridão envolvente. E, de um jeito sutil, eu sentia que estava deixando tudo aquilo para trás. Neste momento, a porta do quarto rangeu, e Helena surgiu, segurando Matteo nos braços. Ela caminhava lentamente, envolvida em meu moletom antigo, que sempre lhe caía bem. Seus olhos estavam visivelmente cansados, e os cabelos presos de qualquer maneira, mas mesmo assim, ela era linda. Linda de uma forma que apenas quem ama de verdade consegue ser. — Achei que você fosse sair sem se despedir — ela comentou, sua voz rouca revelando a emoção contida. Sorri levemente, tentando dissipar um pouco do peso que estava sobre nós. — Eu nunca conseguiria fazer isso. Helena se aproximou e Matteo começou a abrir os olhos lentamente. Ele estava naquelas transições entre o sono e a vigília, com o cabelo desordenado e o coelho de pano firmemente abraçado contra seu peito. Quando me viu, seu olhar se iluminou, e ele soltou aquele som inconfundível que sempre me tocava: — Papai… Isso foi o suficiente para me desarmar completamente. Peguei Matteo no colo, e ele me envolveu com seus bracinhos pequenos, enterrando seu rosto em meu ombro. Ele respirou fundo, como se também compreendesse que minha partida seria mais prolongada do que o que eu havia deixado implícito. Helena me observava em silêncio, e mesmo que tentasse esconder, o medo era palpável nos olhos dela. Ela sempre fora assim, guardando suas dores para não me sobrecarregar. — Eu volto logo — garanti, tentando trazer firmeza à minha voz. — Em três meses. — Três meses é tempo demais para quem fica — ela respondeu, com uma voz baixa e carregada de emoção. Aquelas palavras penetraram em mim como uma lâmina afiada. Suspirei, buscando coragem nas minhas intenções. — Estou indo para garantir o nosso futuro, Lena. Para que Matteo nunca precise passar pelas dificuldades que nós passamos. Ela assentiu, mas a expressão dela dizia outra coisa. — Só volta inteiro. O resto a gente dá um jeito. Por um breve instante, um silêncio profundo nos envolveu. O tic-tac incessante do relógio, o sussurrar do vento do lado de fora e o som delicado da respiração de Matteo pareciam distantes. Era como se, naquele momento, só houvesse nós dois. E a consciência de que o mundo estava prestes a mudar drasticamente. Então, veio um barulho do portão. Era Caio Valença. Ele estava encostado no carro, as mãos enfiadas nos bolsos, seu olhar perdido na escuridão da madrugada. Meu melhor amigo. Meu irmão. — Está tudo pronto? — ele questionou, com uma expressão que misturava ansiedade e determinação. — Tudo — respondi, ajeitando a mochila que estava ao meu lado. — Você vai me deixar no aeroporto? — É o mínimo que posso fazer — ele respondeu, esboçando um sorriso rápido, mas que não conseguiu esconder a apreensão por trás da tentativa de leveza. — Prometo cuidar deles. Helena, que estava ao meu lado, assentiu com confiança. Eu, por outro lado, queria acreditar nas palavras de apoio, mas um certo desconforto se instalava em meu peito. Algo na maneira como ele me olhou não estava certo, como se houvesse um peso nas palavras que não conseguia decifrar. Ao longo do trajeto até o aeroporto, o silêncio reinava dentro do carro. Helena tinha Matteo aconchegado em seu colo, o rostinho virado para o vidro, perdido em seus sonhos. Caio, no banco de trás, fitava a paisagem que passava pela janela, imerso em seus próprios pensamentos. O rádio tocava suavemente, preenchendo o ambiente com uma melodia quase esquecida, enquanto o céu, misto de azul e cinza, refletia a transição do dia. Olhando pelo retrovisor, percebi que Caio estava realmente distante, como se a concentração dele estivesse em outro lugar, longe dali. — Está tudo bem por aí? — perguntei, quebrando o silêncio. — Estou bem. Apenas pensando. Essas horas fazem a gente refletir — respondeu, ainda sem me encarar, a voz baixa e melancólica. — Pensando em quê? — insisti, curioso. — Em como as coisas podem mudar rapidamente — ele disse, e sua resposta despertou uma pontada de preocupação. Dei uma risada nervosa para tentar aliviar a tensão. — Ah, relaxa! Vai dar tudo certo. É só uma viagem de negócios. Caio apenas assentiu, o semblante sério não se alterando. Quando chegamos ao aeroporto, o sol começou a despontar no horizonte, e aquele laranja tímido, que iluminava suavemente o céu, despertou em mim uma mistura de emoções um orgulho agridoce e um aperto no coração. Era a cor do recomeço, mas também do adeus. Ajudei Helena a descer do carro. Matteo, agora acordado, olhou para cima e, com seu dedinho apontando para o céu, disse: — Avião… — Isso mesmo, campeão — respondi, tentando esconder a emoção que se acumulava em minha garganta. Dentro do saguão do aeroporto, procedemos com o check-in. Helena mantinha Matteo apertado contra si, como se temesse que ele pudesse desaparecer. Eu sabia que as lágrimas estavam prestes a brotar, mas ela estava lutando para controlá-las. Aproximando-me, envolvi os dois com um abraço por trás e falei baixinho: — Eu amo vocês. Ela virou um pouco o rosto, encostando o seu no meu e murmurou: — Também te amo. Você vai mas volta. Abaixei-me na altura de Matteo, que já estava desperto e alerto. — Papai vai trabalhar, tá bom? Quando eu voltar, vamos morar em uma casa nova, vai ter um quintal, um cachorro, tudo que você quiser. Ele soltou uma risadinha sonolenta e encostou sua testinha na minha. — Volta? — Volto, prometo. — Afirmou com firmeza. — Sempre volto. Ao olhar para Caio, percebi que ele estava encostado na parede, observando tudo com intensidade. Seus olhos estavam vermelhos, mas não de sono havia algo mais ali, algo que não sabia como nomear. Dirigi-me até ele, dei um leve tapa em seu ombro e disse: — Cuida deles pra mim, irmão. Você é a única pessoa em quem confio para isso. Ele assentiu, engolindo em seco, e a sinceridade nas palavras dele me deu um pouco de conforto. — Eu cuido. Como se fossem meus. O abracei com força, o coração pesado de gratidão, sem saber que aquele seria o último toque entre nós, dois irmãos que compartilhavam tanto. Voltei para onde estavam Helena e Matteo. Ela me fitava intensamente, como se quisesse memorizar cada detalhe meu o jeito que meu cabelo caía sobre a testa, a barba por fazer, até o relógio que marcava o tempo que estava se esgotando. Era um olhar que expressava um adeus sem necessidade de palavras. Beijei os dois. — Cuide do nosso menino. E de você também. Ela concordou com a cabeça. — Nós estaremos te esperando. Dando um passo para trás, tomei fôlego. Mais um passo. E finalmente fui. Decidi não olhar para trás. Sabia que se o fizesse, talvez não tivesse coragem suficiente para seguir em frente. Enquanto formava fila para embarcar, observei meu reflexo no vidro da janela. Vi um rosto cansado e um olhar firme. E uma frase martelava em minha mente: recomeços doem. Silêncios gritam.






