A lua sempre teve um poder estranho sobre mim. Desde pequena, senti o chamado da noite, como se o brilho prateado no céu fosse uma extensão do que eu era.
Nasci loba. Não precisei ser mordida, nem esperar a primeira transformação. Era como se a lua me tivesse escolhido antes mesmo de eu nascer. Cresci em meio ao meu bando, cercada por risadas, treinos e caçadas sob o luar. Meus pais eram respeitados, e todos na alcateia me tratavam com carinho — talvez porque sabiam que eu era diferente. Enquanto os outros aprendiam a controlar o instinto, eu já havia nascido com ele sob domínio. Transformava-me quando queria, sem dor, sem medo. Era livre. Ou pelo menos achava que era. Durante o dia, minha vida era como a de qualquer outra jovem. Estudava Biologia na faculdade, tinha amigas humanas que nem desconfiavam da minha natureza e, nas horas vagas, adorava correr pela floresta atrás da casa dos meus pais, sentindo o vento bater no rosto. A vida era simples. Equilibrada. Até aquela noite. A festa da faculdade acontecia num sítio afastado, cheio de luzes coloridas, música alta e cheiro de bebida misturado com perfume. Cheguei com minhas amigas, rindo, tentando relaxar depois de uma semana cheia de provas. Mas bastou eu dar alguns passos para dentro do salão para sentir algo diferente. Um cheiro. Forte. Quente. Intenso. Meu corpo congelou no mesmo instante. Era doce, amadeirado, impossível de ignorar. Meu coração começou a acelerar, e minha loba interior se agitou de forma descontrolada, como se tentasse escapar. A respiração ficou curta. As mãos tremeram. Aquele cheiro… era inconfundível. Meu companheiro. Olhei ao redor, buscando a origem. No meio da multidão, meus olhos o encontraram. Enzo Valli. Todo mundo na faculdade o conhecia. Filho do Alfa do bando Valli, herdeiro natural da liderança, popular, bonito, confiante. Sempre cercado por gente, sempre no centro de tudo. Mas eu nunca havia sentido nada por ele — até aquele momento. Quando nossos olhares se cruzaram, senti um arrepio percorrer meu corpo. Era como se o mundo inteiro tivesse parado. A marca do destino havia se revelado. Caminhei até ele. Cada passo parecia pesar uma tonelada, mas não havia como fugir. Era como se uma força invisível me puxasse, unindo dois caminhos que a lua já havia traçado há muito tempo. Ele me olhou com surpresa, depois com algo que não consegui identificar. Talvez choque. Talvez medo. Fiquei parada diante dele, o coração disparado, os olhos marejados pela certeza de que finalmente havia encontrado a outra metade da minha alma. Mas o que veio depois… partiu algo dentro de mim. Enzo respirou fundo, ergueu o queixo e, diante de todos — lobos, humanos, curiosos — pronunciou as palavras que ecoariam na minha mente por muito tempo. — Eu, Enzo Valli, recuso você, Hellena Moretti, como minha companheira. Por um instante, o som ao redor desapareceu. Nada além do barulho do meu coração partindo. A marca queimou. Uma dor aguda se espalhou pelo peito, como se algo dentro de mim tivesse sido rasgado. Senti o ar escapar dos meus pulmões. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas eu não deixei que caíssem. Não diante dele. Eu sabia o que precisava fazer. O que a tradição exigia. Mesmo que cada célula do meu corpo gritasse por ele. Engoli o choro, respirei fundo e respondi, com a voz falhando: — Eu, Hellena Moretti, aceito a sua rejeição. As palavras saíram como lâminas. A dor foi imediata — uma ruptura invisível que cortou o vínculo antes mesmo de se formar. Meu corpo vacilou. A loba dentro de mim uivou em desespero, rasgando-me por dentro, implorando para lutar, para não aceitar. Mas eu sabia que não havia escolha. O destino havia sido negado. Virei as costas e saí. O som da música voltou aos meus ouvidos, abafado, distante. As pessoas olhavam, cochichavam, algumas em choque. Mas eu só queria fugir. Fugir de todos, fugir dele. Fugir de mim mesma. Do lado de fora, o ar estava frio, e a lua cheia brilhava alta no céu. Me apoiei em uma árvore e deixei as lágrimas finalmente caírem. O peito doía como se alguém tivesse arrancado parte de mim. Porque ele havia arrancado. A lua me observava em silêncio, como se lamentasse junto. E pela primeira vez desde que me entendo por gente, senti raiva dela. Raiva do destino. Raiva do amor marcado pela natureza, que agora se tornava uma maldição. A loba dentro de mim chorava. E eu, sozinha sob o luar, descobria o verdadeiro peso da rejeição. Naquela noite, algo em mim morreu. Mas, no mesmo silêncio em que chorei, algo também começou a nascer. Uma fúria adormecida. Um instinto que jamais seria domado novamente.