Acordei com o peito queimando.
A marca ainda ardia, mesmo dias depois. A dor da rejeição não era como uma ferida comum. Ela não cicatrizava. Ela se espalhava — pelos ossos, pela alma, pelo vínculo que nunca chegou a se formar. Desde aquela noite, o tempo parecia se arrastar. As horas se tornaram longas, os dias silenciosos, e o mundo inteiro ficou sem cor. Evitei sair, evitei olhar para qualquer um da alcateia. Eu não suportava ver nos olhos deles o reflexo do que eu me tornara: a loba rejeitada. Minha mãe me observava com preocupação. Ela tentava sorrir, preparar meu café, falar sobre coisas simples, como se o cotidiano pudesse me curar. Mas nada curava. Nem o amor dos meus pais, nem o silêncio do luar. Nem mesmo as corridas solitárias sob as estrelas. Às vezes eu me transformava só para gritar. Corria pela floresta até minhas patas sangrarem. Uivava para a lua, implorando por respostas. Mas ela nunca respondia. Talvez estivesse cansada de mim, ou talvez soubesse que nada que dissesse mudaria o que já estava feito. Três dias depois, decidi ir até a clareira da alcateia. Precisava enfrentar os olhares — e, de alguma forma, provar a mim mesma que ainda pertencia àquele lugar. Quando cheguei, todos pararam o que faziam. O silêncio caiu pesado, cortante. Senti os olhares me acompanhando, cheios de pena. Lobos não sabem esconder o cheiro das emoções, e o ar estava impregnado de compaixão e vergonha. Minha vergonha. E então o vi. Enzo Valli. Ele treinava com os outros guerreiros, o corpo firme, o olhar sério, a postura do futuro alfa. Nada nele denunciava arrependimento. Nem culpa. Nem mesmo desconforto. Por um momento, nossos olhos se cruzaram. Foi rápido — um segundo, talvez dois. Mas foi o suficiente para eu entender que, para ele, eu era apenas uma lembrança inconveniente. Nada mais. O peito doeu. Mas, dessa vez, não chorei. Engoli o nó na garganta e segui em frente, mesmo sentindo o peso de cada passo. Nos dias seguintes, tentei voltar à rotina da faculdade. Sentei nos mesmos bancos, ouvi as mesmas vozes, mas tudo parecia distante, abafado. As pessoas falavam, riam, e eu sorria por reflexo, sem sentir nada. Era como se parte de mim tivesse ficado presa naquela noite — no instante em que ouvi aquelas palavras. “Eu, Enzo Valli, recuso você, Hellena Moretti, como minha companheira.” Essa frase não parava de ecoar. Às vezes eu acordava ouvindo-a como se ele estivesse ali, sussurrando no meu ouvido. E o pior era que, mesmo ferida, parte de mim ainda o sentia. Ainda o buscava nos sonhos. Ainda o amava. A loba dentro de mim não aceitava o rompimento. Ela chorava todas as noites, uivando em desespero dentro da minha cabeça, como se tentasse alcançar algo que não existia mais. E, quando ela sofria, eu também sofria. Uma semana se passou, e foi Rafael, meu melhor amigo e beta do bando, quem me forçou a reagir. — Você não pode continuar se escondendo, Hel — ele disse, firme, segurando meu braço. — Se continuar assim, vai acabar se perdendo. A rejeição dói, mas não é o fim. Você é mais forte do que isso. Quis acreditar. Mas a dor me fazia duvidar até da minha própria força. Ainda assim, fui. Participei do treino. Pela primeira vez desde o ocorrido, enfrentei outro lobo. E, no meio da luta, algo estranho aconteceu. Ele avançou rápido, tentando me derrubar, e meu corpo reagiu antes mesmo da mente. Um movimento, um golpe… e ele voou para trás, caindo com força no chão. O som seco me fez recuar, assustada. Rafael gemia de dor. Eu não tinha noção da força que havia usado — e nem de onde ela tinha vindo. Todos olharam, surpresos. Eu também. Senti o coração disparar. A loba dentro de mim rugia, satisfeita, selvagem, como se tivesse finalmente despertado. A rejeição não tinha apenas me ferido. Ela havia me mudado. À noite, quando me olhei no espelho, vi algo diferente. Meus olhos, antes castanhos, refletiam um tom âmbar sob a luz da lua. O brilho era intenso, quase hipnótico. E, por um instante, senti medo de mim mesma. Minha mãe bateu à porta. — Hel, está tudo bem? Assenti, mesmo sabendo que não estava. — Está sim, mãe. Ela me observou por alguns segundos antes de sair. Assim que a porta se fechou, respirei fundo e fechei os olhos. Podia ouvir o som da floresta lá fora. Os uivos distantes. Mas entre eles… havia outro som. Mais baixo. Mais grave. Como se algo me chamasse. Algo antigo, profundo. Forte o bastante para fazer minha loba estremecer. E, pela primeira vez desde a rejeição, senti medo — não de perder o controle, mas do que eu poderia me tornar. A rejeição me quebrou. Mas também me libertou de algo que eu ainda não entendia. E enquanto o luar atravessava a janela e iluminava meu rosto, percebi que talvez o destino ainda não tivesse desistido de mim.