Mundo de ficçãoIniciar sessãoO passado veio como uma lâmina mal afiada.
Não cortava de uma vez, rasgava devagar, abrindo feridas que nunca haviam cicatrizado direito. Lyra estava correndo. Aquilo tinha acontecido cerca de um ano antes do sangue, antes do julgamento, antes do nome dela se tornar sinônimo de traição. Um tempo curto demais para ser esquecido, mas longo o suficiente para que tudo parecesse pertencer a outra versão dela. Uma versão mais ingênua. Mais inteira. Mais perigosamente confiante. A floresta se abria diante de seus passos com familiaridade, os galhos desviando quase sozinhos, como se a própria mata conspiasse a seu favor. A terra macia respondia ao peso de seus pés, moldando-se, amortecendo cada impacto. O vento batia contra o rosto, carregado de cheiros vivos: musgo úmido da margem do rio, resina escorrendo de cascas feridas, o rastro metálico de caça recente, o almíscar denso de outros lobos. O corpo obedecia sem esforço, cada músculo sincronizado numa dança ancestral. Forte. Rápido. Inteiro. Ela tinha dezessete anos. E ainda acreditava, com toda a teimosia da juventude, que pertencia àquele lugar. Lyra não estava fugindo. Estava livre. Risos ecoaram atrás dela, misturados a passos rápidos que faziam a terra tremer em pequenas vibrações. Ela virou o rosto por cima do ombro, o cabelo escuro chicoteando o ar, o sorriso aberto, selvagem, quase provocador, o tipo de sorriso que não temia desafios nem consequências. — Vai perder de novo! — gritou para a fêmea que vinha logo atrás, sua voz carregando aquela confiança irritante da juventude. A resposta veio em forma de rosnado divertido, seguido por uma aceleração brusca que fez folhas mortas explodirem do chão. A alcateia corria junta naquela noite, espalhada pela floresta sob a lua crescente que pendurava no céu como uma promessa ainda não cumprida. Não havia tensão cortando o ar. Não havia medo espreitando nas sombras. Apenas o prazer antigo, primitivo, de correr com os seus. O tipo de liberdade que fazia o sangue cantar nas veias e a besta interior ronronar satisfeita. Ainda não havia desconfiança. Ainda não havia olhares que pesavam como julgamentos silenciosos. Lyra desacelerou perto do rio, o som da água corrente crescendo até dominar todos os outros ruídos. Saltou sobre uma pedra lisa com facilidade quase dançante, aterrissando com leveza impossível para um corpo humano. Alguns lobos já haviam parado ali, agrupados na margem pedregosa, conversando em tons baixos, rindo de piadas internas, se empurrando de leve na brincadeira física que lobos usavam como linguagem de afeto. Quando ela chegou, saltando da pedra para a margem com um último impulso, os olhares se voltaram para ela, não com o ódio que viria depois, mas com atenção demais. Sempre atenção demais, como se ela fosse um quebra-cabeça que ninguém conseguia resolver, ou uma ameaça que ainda não havia se materializado completamente. Desde que completara dezessete anos, a duas semanas atrás, algo nela parecia… deslocado. Não errado, exatamente, mas diferente de uma forma que fazia os pelos da nuca de outros lobos se eriçarem. O uivo soava mais profundo que deveria, vibrando em frequências que faziam as árvores estremecerem imperceptivelmente. A transformação vinha cedo demais nas noites de lua, seu corpo respondendo ao chamado antes mesmo que a prata no céu estivesse completa. Às vezes, ela sentia a floresta responder, não de forma vaga ou imaginada, mas real. Galhos se curvavam quando ela passava. Animais menores se afastavam não por medo comum, mas por reconhecimento de algo maior. Como se a própria terra a escutasse e decidisse obedecer. Ela fingia não notar, enterrando essas observações no fundo da consciência onde coisas inconvenientes moravam. — Você está ficando rápida demais — comentou um deles, um macho de ombros largos que cruzava os braços numa postura que tentava parecer casual mas traía nervosismo. — Ou vocês estão ficando lentos — respondeu ela, arqueando uma sobrancelha com aquele jeito desafiador que tornava impossível não reagir. — Velhice chegando cedo? Alguns riram, o som ecoando pela margem do rio. Outros se fecharam, os rostos se contraindo em expressões que misturavam desconforto e algo próximo de ressentimento. Nem todos gostavam dela. Lyra sentia isso nos silêncios que se prolongavam quando ela entrava em uma sala, nos conselhos murmurados que surgiam magicamente quando ela passava, nos avisos não pedidos sobre "controle" e "limites" que ninguém mais parecia receber com tanta frequência. — O conselho quer falar com você — disse uma voz masculina atrás dela, cortando a tensão crescente. Lyra se virou, água do rio ainda respingando de suas botas. Kael estava ali, recortado contra as árvores escuras. Ainda não era alfa naquela época. Não carregava as marcas físicas da liderança, as cicatrizes de desafios vencidos, as linhas de preocupação prematura, nem o peso das mortes que teria que ordenar. Mas os olhos dourados já eram atentos demais, sérios demais para alguém tão jovem. Mal sabia que um mês depois o trono o chamará, ele se tornaria alfa pela morte do pai. Havia algo nele que sempre fizera Lyra pausar, mesmo quando todo instinto gritava para desafiar, para testar limites. Uma solidez. Uma certeza que não vinha de arrogância, mas de algo mais profundo. — De novo? — ela perguntou, deixando frustração vazar na voz. — Eu fiz algo dessa vez, ou é só paranoia coletiva? — Você sempre faz algo — respondeu ele, sério, mas sem a dureza que outros usariam. Havia quase um traço de cansaço ali, como se repetisse essa conversa pela milésima vez. O clima ao redor mudou, o ar ficando mais denso. As conversas morreram. Alguns lobos se afastaram discretamente, não querendo testemunhar o que viria a seguir. Lyra se aproximou, fechando a distância entre eles com passos deliberados, invadindo o espaço pessoal dele por puro desafio, testando como sempre testava. — Vai me levar algemada também? — perguntou, a voz baixa mas carregada de provocação. — Fazer um espetáculo disso? — Não brinque com isso — disse Kael, mais baixo ainda, e havia algo nas palavras que não era ameaça. Era aviso. Preocupação real. Havia tensão ali, crua e indefinida. Não desejo, não ainda. Era algo mais bruto, mais instintivo. Dois animais se reconhecendo antes do tempo certo, dois instintos percebendo que estavam destinados a colidir de formas que nenhum dos dois conseguia prever completamente. — Então o que o conselho quer? — ela insistiu, recusando-se a recuar. — Mais uma palestra sobre controle? Mais avisos sobre o que pode acontecer se eu respirar errado? Kael hesitou, e Lyra viu a guerra interna acontecendo atrás daqueles olhos dourados. Ele era leal ao conselho, às tradições, à estrutura que mantinha a alcateia unida. Mas algo nele também resistia à forma como tratavam Lyra, como uma bomba-relógio, não uma pessoa. — Eles dizem que você escuta coisas que não deveria — disse finalmente, as palavras saindo pesadas. — Que há algo diferente acontecendo com você. O sorriso dela sumiu como se nunca tivesse existido. — Quem disse isso? — Não importa. — Importa pra mim — rebateu ela, a voz endurecendo. Kael passou a mão pelos cabelos escuros, inquieto, olhando brevemente para os lados como se checasse quem mais poderia estar ouvindo. — Há rumores, Lyra. Sobre o seu uivo — ele baixou ainda mais a voz. — Sobre a forma como você reage à lua. Sobre o que pode acontecer… quando você completar a maioridade. Ela sentiu o estômago se contrair, um frio diferente do ar noturno se espalhando por suas entranhas. — Isso ainda falta um ano — retrucou, mas a voz saiu menos firme do que pretendia. — A lua não espera aniversários — respondeu Kael, e havia conhecimento amargo naquelas palavras. — E dezoito é quando os lobos despertam o poder por completo. Ele sustentou o olhar dela por um segundo a mais do que o necessário. O que Kael não disse era que não era apenas o poder que despertava. Era também quando o instinto passava a reconhecer aquilo que não podia mais ser ignorado. Parceiros. Vínculos. Reclamações silenciosas que não pediam permissão. Era isso que o conselho temia. Não o que Lyra podia se tornar — mas quem poderia reivindicá-la. Outra alcateia. Outro alfa. Um vínculo fora do controle deles. Eles não permitiriam. Kael engoliu o que não podia dizer e desviou o olhar, como se o silêncio fosse uma forma de proteção. O silêncio caiu pesado entre eles, preenchido apenas pelo murmúrio constante do rio e o farfalhar de folhas. — Você confia em mim? — ela perguntou de repente, virando a cabeça para encará-lo completamente. Kael franziu o cenho, surpreso pela pergunta direta. — Essa não é uma pergunta simples. — Eu sei — disse Lyra, e pela primeira vez naquela noite, sua voz carregava algo além de desafio. Carregava vulnerabilidade real, assustadora. — Mas preciso saber. Ele a observou em silêncio por um longo momento, como se tentasse enxergar além da jovem forte que provocava o conselho, além da loba promissora que corria mais rápido que deveria. Como se soubesse, com aquela intuição que bons alfas desenvolviam, que algo nela não cabia — não caberia nunca — nas regras cuidadosamente construídas da alcateia. — Eu confio no que vejo — disse, por fim, cada palavra escolhida com cuidado. — E o que vejo… me preocupa profundamente. Lyra deu um passo para trás, como se as palavras tivessem peso físico. — Então fique longe. — Não posso. A palavra escapou antes que ele pudesse contê-la, carregada com um significado que nenhum dos dois estava pronto para examinar. --- A lembrança se quebrou ali, se estilhaçando como vidro. De volta à cela úmida, Lyra acordou sobressaltada, o peito arfando em respirações irregulares, o corpo coberto de suor frio apesar da temperatura gelada. O coração batia rápido, descompassado, como se ainda estivesse correndo pela floresta. Por um momento confuso, ela não soube onde estava — passado e presente se misturando numa colagem cruel. Então a realidade voltou: pedra fria, correntes pesadas, escuridão que cheirava a mofo e desespero. Ela fechou os olhos com força, tentando segurar os fragmentos da memória antes que desaparecessem completamente. Aquele Kael mais jovem, ainda não marcado pela traição. Aquela versão dela mesma que ainda sorria sem pedir permissão. Ela lembrava de quem tinha sido — não apenas dos fatos, mas da sensação. Da liberdade que vinha do pertencimento, mesmo quando esse pertencimento era frágil e condicional. E compreendia agora, com uma clareza cruel que só o sofrimento podia trazer: O que despertaria na lua vermelha, o poder que rasgaria através dela como algo vivo e faminto… não surgiria do nada. Sempre estivera ali, crescendo em silêncio, esperando. E todos sabiam. Todos sempre souberam.






