Mundo de ficçãoIniciar sessãoLyra foi arrancada do inconsciente pelo cheiro, e a dor veio logo em seguida, como uma companheira fiel que apenas esperava o momento certo para se anunciar.
Pedra úmida. Ferro oxidado. Sangue velho impregnado em cada fissura das paredes. O odor era tão denso, tão tangível, que parecia grudar na língua como óleo rançoso, se infiltrar em cada respiração até se tornar parte dela. Cada inspiração queimava o peito, trazendo consigo ecos de algo que ela não conseguia lembrar conscientemente, mas que o corpo reconhecia com uma repulsa visceral, instintiva — a memória ancestral de violência, de morte, de outros que haviam ocupado aquele espaço antes de desaparecerem para sempre. Abriu os olhos devagar, piscando contra a luz fraca e doentia que escorria por uma abertura irregular no teto de pedra, provavelmente uma ventilação mal feita que deixava entrar mais umidade que ar fresco. Os olhos levaram tempo demais para focar, a visão embaçada oscilando entre clareza e escuridão. Estava deitada sobre o chão frio — pedra nua, sem palha, sem nada que suavizasse o contato brutal entre carne e rocha. Nua da cintura para baixo, a pele exposta ao frio cortante, coberta apenas por um tecido áspero na parte superior que mal protegia do gelado e que cheirava a mofo e suor alheio. Os pulsos estavam presos por algemas grossas, pesadas, cravadas diretamente na parede através de argolas de ferro que rangiam a cada movimento mínimo. Cada ajuste fazia o metal morder sua carne já machucada, abrindo pequenas fissuras que ardiam intensamente ao contato com o ar carregado de umidade e sal. Ela tentou puxar os braços por puro reflexo, o corpo reagindo antes da mente processar a inutilidade do gesto. O corpo respondeu com dor aguda, elétrica, que subiu pelos antebraços e explodiu nos ombros. — Você demorou — disse uma voz grave, vinda das sombras. Lyra virou o rosto lentamente, ignorando a pontada que atravessou o pescoço, o coração acelerando antes mesmo de identificar quem falava. O corpo sabia. Reconhecia aquela voz em algum nível profundo que transcendia memória consciente. Kael estava encostado na parede oposta da cela, os braços cruzados sobre o peito largo, o corpo parcialmente engolido pelas sombras que se acumulavam nos cantos como criaturas vivas. Não usava a lâmina ritual agora — a bainha ao cinto estava vazia — mas a ausência dela não o tornava menos perigoso. Pelo contrário. Sem armas visíveis, ele parecia ainda mais predador, mais letal, como se o próprio corpo fosse feito para matar, cada músculo uma arma em potencial. Havia marcas novas em suas mãos. Arranhões recentes cruzando os nós dos dedos. Sangue seco sob as unhas, escuro como ferrugem. Lyra tentou puxar os braços outra vez, recusando-se a aceitar a realidade das correntes. Inútil. O metal não cedeu nem um milímetro. Um gemido escapou antes que conseguisse conter, o som saindo fraco, patético, vulnerável. Ecoou pela cela pequena e baixa, voltando para ela de forma humilhante, multiplicado. Os olhos dele desceram lentamente pelo corpo dela, avaliando cada reação com atenção cirúrgica. Não havia pena ali. Não havia nem crueldade gratuita. Havia atenção pura, foco absoluto. Como um caçador observando a presa ferida para entender exatamente até onde ela aguentaria antes de quebrar completamente. — Onde eu estou? — perguntou ela, forçando as palavras através da garganta rouca, arranhada como se tivesse gritado por horas. — Abaixo da casa do conselho — respondeu ele, a voz plana, desprovida de emoção. — Onde deixamos aquilo que não sabemos se deve viver ou morrer. O peso da frase caiu sobre ela com força física, esmagando o pouco de dignidade que ainda tentava manter. *Aquilo*. Não *quem*. Não *ela*. *Aquilo*. Coisa. Objeto. Problema a ser resolvido. Lyra soltou uma risada curta, amarga, sem humor algum, que doeu no peito e saiu mais como tosse. — Encantador — conseguiu dizer. — Deve ter um ótimo valor no mercado imobiliário. Kael se aproximou, ignorando a provocação fraca. Cada passo dele parecia pesar mais que o anterior, as botas pesadas fazendo a pedra ressoar de forma quase rítmica, como batidas de um coração gigantesco. Como se a própria rocha reconhecesse sua autoridade e se curvasse levemente sob seu peso. Quando parou à frente dela, agachou-se com movimentos controlados, ficando exatamente na altura do rosto dela, invadindo completamente seu campo de visão. O cheiro voltou com força devastadora. Quente. Masculino. Dominante de uma forma que transcendia simples presença física. Misturado a raiva mal contida, luto recente ainda sangrando, e algo mais perigoso — algo primitivo, instintivo, que fez o estômago de Lyra se revirar de uma forma que não era apenas nojo. Seu corpo reagiu antes da mente poder intervir, um arrepio profundo e involuntário percorrendo a espinha, fazendo a pele se arrepiar, quase vergonhoso na intensidade. Ela odiou aquilo com força. Odiou ainda mais não conseguir controlar, não conseguir impedir que o corpo traísse o que a mente recusava. — Você sabe por que está aqui — disse ele, não como pergunta, mas como afirmação. — Não — rebateu ela, firme, forçando estabilidade na voz mesmo com o coração batendo descontrolado. — Todos dizem que eu traí a alcateia. Mas ninguém diz *como*. Ninguém explica o que diabos eu supostamente fiz. Kael a encarou por longos segundos que se estenderam como horas, os olhos dourados escurecendo até ficarem quase âmbar, as pupilas se dilatando. O silêncio se estendeu, cresceu, ocupou todo o espaço disponível até ficar insuportável, sufocante. Então, sem aviso, sem gentileza, ele segurou o queixo dela com força suficiente para doer, dedos cravando na mandíbula, obrigando-a a encará-lo sem possibilidade de desviar. — Você abriu o círculo sagrado — disse, baixo, perigosamente baixo, cada palavra afiada como vidro quebrado. — Durante a lua vermelha. Quando as barreiras entre mundo e instinto desaparecem. Três lobos morreram naquela noite, dilacerados de dentro para fora. Um deles era meu irmão. O ar deixou os pulmões dela de uma vez, como se alguém tivesse socado seu estômago. A palavra *irmão* ecoou dentro de algo que não era memória consciente, mas culpa instintiva, primordial. Um peso estranho, inexplicável, pressionou seu peito com força brutal, fazendo os olhos arderem com lágrimas que ela recusava deixar cair. — Eu… — a voz falhou. Ela engoliu em seco, tentou de novo. — Eu não lembro disso. Juro que não lembro. — *Eu lembro* — rosnou Kael, e havia tanta dor naquelas duas palavras que elas saíram distorcidas, quase irreconhecíveis. Havia ódio ali, sim. Ódio puro, justificado, que queimava nos olhos dourados como brasas. Mas havia também algo quebrado. Algo que sangrava por baixo da raiva. Ele a soltou abruptamente, como se o contato queimasse, e se levantou fazendo um sinal curto e seco com a mão. A porta da cela se abriu com um rangido grave, metálico, que ecoou pelas paredes de pedra. Dois lobos entraram, musculosos e sérios, arrastando algo pesado pelo chão de pedra — o som de peso morto sendo puxado, patético e final. Um corpo. Ou o que restava de um. Lyra gritou. Não conseguiu conter. O som rasgou sua garganta já machucada quando o cheiro a atingiu com violência física — morte recente, vísceras expostas, sangue rico e denso. O homem estava dilacerado de forma brutal, quase artística na crueldade. O peito aberto em marcas profundas de garras, tiras de carne pendendo de ossos expostos que brilhavam brancos sob a luz fraca, órgãos internos visíveis através de buracos irregulares. O sangue ainda brilhava sob a luz doentia, fresco demais, vermelho demais. — Olhe — ordenou Kael, segurando o rosto dela com as duas mãos agora, forçando-a na direção do cadáver mesmo quando ela tentou virar, tentou fechar os olhos. — Olhe *bem*. Foi assim que você o deixou. Cada marca. Cada ferida. Você fez isso com suas próprias mãos. As lágrimas escorreram sem controle agora, quentes, desesperadas, deixando trilhas limpas em seu rosto sujo. — Eu não faria isso… — repetiu, a voz quebrada em fragmentos. — Eu *não faria* isso… eu não sou… eu não… — *Fez*. A palavra saiu mais baixa desta vez. Mais cansada. Carregando peso que ia além de acusação. A voz dele falhou pela primeira vez, rachando imperceptivelmente. Kael soltou o rosto dela abruptamente e se afastou vários passos, virando as costas, passando ambas as mãos pelos cabelos escuros com força, respirando fundo e irregular, como se lutasse contra algo dentro de si. O lobo querendo emergir, a dor querendo explodir, ou ambos simultaneamente. — Matei por menos do que você fez — continuou, sem encará-la, a voz rouca. — Muito menos. Por desrespeito. Por desafio. Por olhares errados. Mas quando a lâmina tocou seu pescoço naquela clareira… — ele pausou, os ombros tensos. — O meu lobo recuou. Simplesmente… recusou. Ele voltou a encará-la lentamente, e havia algo diferente nos olhos agora. Não mais apenas raiva. Medo. — E isso *nunca* aconteceu — completou. — Em todos os anos como alfa, em todas as execuções, julgamentos, sentenças… nunca. Lyra sentiu o peso daquelas palavras se instalar em seu corpo como uma sentença física, pesada, real. Não era só raiva que ele sentia. Era confusão profunda. Era medo do que ela representava, do que ela poderia ser. — O que eu sou pra você? — perguntou, quase num sussurro, a voz saindo pequena, assustada. Kael se aproximou de novo, devagar desta vez, cada passo medido. Quando parou a centímetros dela, não tocou. A proximidade foi infinitamente pior que qualquer contato físico — o calor do corpo dele irradiando, o cheiro envolvendo, a presença dominando todo o espaço disponível. — Um erro — disse, a voz baixa, íntima demais para o ódio que deveria carregar. — Um perigo que não entendo. E uma ameaça que meu instinto se recusa a destruir mesmo quando deveria. Ele estendeu a mão lentamente e, com dois dedos apenas, tocou o pulso dela onde a veia pulsava descontrolada. O contato foi breve, talvez três segundos, mas o impacto foi brutal, devastador. Algo queimou entre eles, vivo demais, real demais, errado demais. Como eletricidade atravessando água. Como fogo encontrando pólvora. Lyra arqueou as costas involuntariamente, o ar preso na garganta, sentindo o lobo dentro dela — aquela parte adormecida, esquecida, enterrada — se agitar violentamente, responder ao chamado que vinha dele. Kael fechou os olhos por um segundo longo, os dentes cerrados com força suficiente para fazer a mandíbula tremer, como se aquilo fosse tortura pura. — Isso não deveria acontecer — murmurou ele, mais para si mesmo que para ela. — Então *para* — ela respondeu, a voz fraca, quebrada, quase implorando sem querer, sem conseguir esconder o desespero. Ele não parou. Não imediatamente. Ficou ali, dedos ainda tocando o pulso dela, sentindo o sangue correr, o coração disparar. Como se memorizasse. Como se tentasse entender através do toque o que a mente recusava. Então, abruptamente, soltou. Caminhou até as correntes e, com movimentos bruscos, soltou as algemas de um dos pulsos. O metal caiu com um som seco, final, no chão de pedra. — Se tentar fugir, morre — disse, a voz voltando àquele tom de comando absoluto. — Se mentir, morre. Se tentar usar o que quer que seja que fez naquela noite, eu mesmo corto sua garganta. Ele se virou para a porta, cada movimento rígido, controlado demais. — Mas se disser a verdade… — pausou, a mão na maçaneta. — Eu mantenho você viva. Pelo tempo que for possível. Kael se afastou sem olhar para trás, os passos ecoando pelo corredor estreito, deixando a porta da cela se fechar com um baque pesado que reverberou pelas paredes como sentença final. Sozinha na escuridão que se fechava rapidamente, com o coração ainda disparado, o pulso ardendo onde ele tocara como se tivesse sido marcada a ferro, e o corpo do irmão dele ainda visível no canto da cela, Lyra teve certeza absoluta de três coisas: Ela não era apenas prisioneira. O alfa que deveria odiá-la acima de tudo — que tinha todo direito de odiá-la — já estava perigosamente envolvido em algo que nenhum dos dois entendia. E o que quer que tivesse acontecido durante a lua vermelha… estava longe de terminar.






