Capítulo 4

A escuridão da cela tinha textura própria.

Não era apenas a ausência de luz, era a presença de algo vivo, denso, que se agarrava à pele como dedos gelados. Lyra permanecia imóvel sobre a pedra fria, cada respiração trazendo o ar viciado que queimava os pulmões. O pulso livre ainda latejava onde Kael havia tocado, uma marca invisível que ardia mais que as feridas abertas. O outro braço permanecia preso, o metal mordendo a carne em um lembrete constante de sua condição.

Minutos atrás ou teriam sido horas? o tempo se perdia naquele buraco. Os mesmos lobos que trouxeram o corpo o haviam arrastado para fora. Mas o cheiro se recusava a partir. Sangue coagulado. Morte recente. Acusação silenciosa que flutuava no ar denso como fumaça.

Você fez isso.

As palavras ecoavam na mente, insistentes, impossíveis de aceitar mas impossíveis de negar completamente. As evidências estavam ali, o corpo dilacerado, o testemunho de doze lobos, os olhos de Kael carregados de dor e ódio.

Lyra fechou os olhos com força, tentando afastar a imagem daquelas feridas profundas, daquela carne rasgada que um dia foi alguém que ela conhecia. Mas a escuridão por trás das pálpebras não ofereceu refúgio.

Ofereceu algo infinitamente pior.

O passado.

A lembrança não pediu permissão para entrar, simplesmente invadiu, violenta como água rompendo uma represa rachada. Primeiro apenas gotejando, fragmentos desconexos, depois jorrando com força incontrolável que a arrastou para longe da cela, para longe do presente, para um tempo quando ainda tinha um lar.

Quinze anos.

Ela podia sentir a idade nos ossos da memória, aquela fase estranha entre criança e adulta, quando o corpo mudava rápido demais e o mundo parecia simultaneamente enorme e sufocante.

A casa surgia nítida demais para ser apenas lembrança. Pequena mas aconchegante, construída com madeira escura que cheirava a resina mesmo depois de anos. Telhado inclinado para deixar a neve escorrer no inverno. Uma varanda onde seu pai costumava sentar ao entardecer, o corpo grande relaxado na cadeira de balanço que rangia suavemente, observando os lobos retornarem das patrulhas diárias com aquela atenção tranquila de quem comandava sem precisar gritar.

Ele era o beta. Segundo apenas ao Alfa Theron. A mão direita. O conselheiro de confiança. O homem que todos respeitavam não por medo, mas por admiração genuína. Sua presença acalmava disputas. Sua palavra carregava peso que rivalizava com a do próprio alfa.

E sua mãe... a memória dela trouxe uma dor física no peito. Aquele riso suave, genuíno, raro o suficiente para ser precioso quando acontecia. O tipo de riso que fazia tudo parecer administrável, que transformava dias ruins em toleráveis.

Naquela noite, algo dentro dela sussurrou, você estava voltando de uma corrida.

E Lyra se viu ali, quinze anos de novo, o corpo menor mas já forte, já mostrando os sinais do que viria. Voltando da floresta onde praticava sozinha porque ainda não era forte o suficiente para acompanhar os adultos nas caçadas verdadeiras. O suor colava a camiseta às costas, os pulmões queimavam daquela forma satisfatória que vinha do esforço físico, as pernas tremiam levemente mas aguentavam.

E então viu a fumaça.

O mundo inclinou.

Cinza escuro... não, era preto, sujo, errado subindo em espirais grossas contra o céu do crepúsculo. Manchando o roxo e laranja delicado com negro doentio, criando uma nuvem que parecia absorver a luz ao redor.

O coração disparou enquanto ela ainda processava o significado daquilo.

Corra

As árvores passavam borradas em sua visão periférica, galhos baixos chicoteando seu rosto e deixando arranhões que ela não sentia. Não sentia dor. Não sentia cansaço. Não sentia nada além daquele medo primitivo, visceral, que gritava nas entranhas que algo estava profundamente errado.

A clareira surgiu abruptamente.

E o mundo pegou fogo.

Laranja vivo dançava contra vermelho intenso, amarelo ofuscante explodindo das janelas. O fogo devorava a madeira com voracidade que parecia consciente, quase maliciosa. Crepitando. Rugindo. Vivo de uma forma que casas em chamas não deveriam ser. As janelas explodiam uma a uma em sequência quase musical, vidro estilhaçando e liberando línguas de fogo que lambiam o ar noturno como criaturas famintas.

— MÃE! — o grito rasgou sua garganta de quinze anos, a voz rachando de desespero puro. — PAI!

Outros lobos já estavam ali — como chegaram tão rápido? — formando uma linha desesperada e patética, passando baldes d'água que pareciam ridiculamente inúteis contra aquela fúria. Alguns gritavam ordens que ninguém seguia. Outros apenas observavam, rostos iluminados pelas chamas dançantes, expressões variando entre choque genuíno e algo mais perturbador.

Aceitação.

Resignação.

Como se já soubessem que era tarde, que sempre foi tarde demais.

A Lyra de quinze anos tentou correr para dentro das chamas. Mãos fortes, grandes, masculinas, inescapáveis a agarraram pelos braços, pelos ombros, segurando com força que deixaria marcas por dias.

— Não! — rosnou uma voz grave, próxima ao ouvido. — Está perdida. A casa está perdida. Eles se foram.

— NÃO! — ela lutou como animal preso, socando, chutando, mordendo qualquer carne que alcançasse. Mas era jovem demais, pequena demais, fraca demais contra lobos adultos que conheciam exatamente como imobilizar.

As chamas alcançaram o telhado que desabou com um estrondo que fez a terra sob seus pés tremer. Faíscas explodiram para o céu escuro como estrelas morrendo, criando um segundo céu de brasas que flutuavam lentamente antes de se apagar.

E então, através da fumaça que queimava os olhos e arrancava lágrimas, através da dor que comprimia o peito, tornando cada respiração dolorosa, Lyra viu.

Uma figura.

Na borda da floresta, parcialmente escondida entre as árvores de troncos grossos. Imóvel como estátua de pedra. Observando.

Encapuzada.

O manto era mais que escuro Absorvia até as chamas distantes, criando um buraco na realidade com forma vagamente humana. Impossível distinguir detalhes, rosto, mãos, sexo, idade. Mas a postura comunicava tudo. Não havia choque ali. Não havia horror.

Havia satisfação.

O tipo de postura de alguém observando um trabalho bem feito.

O coração de Lyra gelou mais que o ar noturno poderia justificar.

Não foi acidente.

A certeza chegou completa, instintiva, irrefutável.

— ALI! — ela gritou, apontando com a mão livre para a linha das árvores, lutando contra quem a segurava. — NA FLORESTA! TEM ALGUÉM! ALGUÉM FEZ ISSO! OLHEM—

Alguns lobos seguiram o braço estendido, virando-se rápido, procurando. Mas os rostos voltaram quase de imediato para ela. Vazios. Confusos.

Depois, pena.

Era assim que a olhavam.

Como se ela tivesse enlouquecido de dor. Como se estivesse vendo coisas que não existiam.

— Mas está ali. ESTÁ ALI!

A figura encapuzada levantou a mão.

Um movimento lento, deliberado, quase casual em sua tranquilidade. Algo como dedos se estendia em sua direção.

E o mundo de Lyra apagou.

Não gradualmente, não como desmaio comum onde tudo fica embaçado e escurece nas bordas. Instantaneamente. Como se alguém tivesse cortado os fios que conectavam consciência ao corpo. A luz simplesmente... apagou.

Lyra acordou sobressaltada na cela, o corpo todo tenso, coração martelando dolorosamente contra as costelas. Suor frio escorria pelas têmporas, misturando-se com lágrimas que não se lembrava de ter começado a derramar.

A mão. A figura encapuzada. Aquele gesto.

As memórias continuaram chegando em ondas, como se a primeira tivesse aberto uma comporta. Acordar no dia seguinte em uma cama estranha. Descobrir que seus pais não haviam escapado. O funeral onde queimaram os poucos restos que encontraram. A história que todos repetiam com convicção absoluta:

Acidente. Lenha seca demais. Faísca errante. Tragédia imprevisível.

Ela havia acreditado.

Como pôde esquecer a figura? Como pôde esquecer aquele momento crucial onde viu com os próprios olhos alguém observando, alguém claramente envolvido?

— Como... — a voz saiu rouca, quebrada. — Como eu esqueci?

Fizeram você esquecer. — o mesmo sussurro de antes.

Alguém havia roubado aquela memória. Não completamente. Deixaram o trauma, a dor, a perda. Mas arrancaram a parte crucial. A parte que transformava tragédia em assassinato. Acidente em conspiração.

— Magia — sussurrou para a escuridão que a engolia. — Tinha que ser magia.

Era o tipo de magia que a alcateia mantinha fora de suas terras. As barreiras existiam para isso. Bruxas, talvez.

Se eu sobreviver, o pensamento veio frio e afiado como lâmina, se conseguir sair daqui... quem fez isso vai pagar.

Cada. Gota. De. Sangue.

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