O som suave de um alarme digital quebrou o silêncio do quarto. Eram seis da manhã.
Dayse abriu os olhos lentamente, sem saber se realmente havia dormido ou se apenas desmaiado de tanto cansaço mental. A cama impecável, as cortinas pesadas, o ambiente asséptico — tudo ali parecia fora do tempo.
Na mesa de cabeceira, o café da manhã repousava ao lado de um envelope bege. Seu nome estava escrito à mão, em letras frias: "Dayse Bellucci". Um nome que não era exatamente seu, mas que agora parecia uma algema invisível.
Dentro do envelope, uma folha solitária listava um cronograma meticuloso:
07h00 — Exames clínicos com o Dr. Barreto
14h00 — Início do Protocolo de Fertilidade Avançada.
No canto inferior, uma anotação manuscrita, ligeiramente inclinada, parecia ter sido feita às pressas: "Vista-se com a roupa deixada na poltrona."
Ela se virou lentamente em direção à cadeira. Sobre o estofado, uma vestimenta austera — semelhante a um pijama hospitalar.
Às sete em ponto, Luna surgiu. Pontual. Precisa. Implacável, como sempre.
Dayse assentiu sem olhar para ela.
O caminho pelo corredor foi silencioso. As janelas de vidro opaco mostravam o jardim de maneira distorcida, um mundo inalcançável. A barreira física traduzia sua nova realidade: confinamento absoluto.
Ao atravessarem uma porta lateral da mansão, o ambiente tornou-se ainda mais frio. As luzes intensas apagavam qualquer vestígio de aconchego. No centro do espaço, o médico e a enfermeira esperavam. Profissionais. Distantes. Sérios.
— Bom dia, senhora Bellucci. Vamos começar.
O título soou como uma sentença: "Senhora Bellucci." Um nome que não lhe pertencia, uma identidade vazia impressa em documentos oficiais. A verdade se dissipava, substituída por um papel imposto, frio como aquele ambiente.
A enfermeira anotava meticulosamente os dados, enquanto o médico, com movimentos precisos, ajustava as luvas. Tudo era impecavelmente profissional, mas carregado de uma estranha ausência de calor humano.
Durante todo o exame, os olhos dela pareciam invisíveis, como se não houvesse rosto, apenas um corpo a ser analisado. Ninguém perguntou como ela estava, ninguém se preocupou em saber como se sentia.
Cada toque era mecânico, cada gesto rápido e funcional, como se ela fosse apenas mais um número em uma longa lista.
As vozes que preenchiam o espaço não eram para ela, mas entre eles, trocando informações com uma frieza que parecia natural, quase ensaiada, deixando no ar um vazio que pesava mais do que qualquer silêncio.
— O protocolo inclui estimulação ovariana de alto nível, com objetivo de gestação imediata. Começamos hoje — informou o médico. — É recomendável que mantenha repouso nos dias seguintes. E evite qualquer atividade física sem nossa autorização.
Dayse inclinou a cabeça em um gesto quase imperceptível, carregando o peso silencioso de uma aceitação inevitável.
Seus olhos atentos captaram o leve tremor nas mãos da enfermeira — uma faísca de fragilidade num ambiente onde tudo deveria ser controlado.
Quando falou, sua voz era baixa, quase um sussurro, como se viesse de um lugar distante:
— Não precisa se preocupar. Eu já não sinto nada.
A enfermeira hesitou. Mas seguiu em silêncio. Como todos ali.
Na volta para o quarto, Luna reforçou a rigidez do sistema:
— O protocolo será monitorado por mim — anunciou, sem desviar os olhos da frente.
— Não toleramos atrasos, recusas ou imprevistos.
A rigidez de sua voz era um aviso, uma barreira contra qualquer desvio.
Dayse inspirou profundamente, tentando conter a inquietação que pulsava sob sua pele.
Aquela casa era um labirinto, e ela, o rato que, a cada dia, aprendia a percorrer seus corredores com uma precisão quase instintiva. Mas, em alguns momentos, não podia evitar o desejo ardente de que, ao final de um desses trajetos, encontrasse uma porta aberta, uma saída para algo além das paredes sufocantes.
Dayse não respondeu às palavras que Luna havia dito momentos antes. Em vez disso, sua voz emergiu, baixa e carregada de um anseio que parecia ter sido reprimido por tempo demais. Era um pedido simples, mas impregnado de uma vulnerabilidade que a fazia hesitar:
— Eu gostaria de caminhar um pouco no jardim, se for possível.Sua voz era um fio delicado, quase quebradiço, como quem pede permissão para algo tão essencial quanto respirar. Havia ali uma súplica silenciosa, um eco de tudo o que ela não podia dizer, mas que transbordava em cada palavra cuidadosamente escolhida.
Luna interrompeu o passo, virou-se com precisão cirúrgica:
— Este jardim não lhe pertence… Sra. Bellucci.
Uma pausa.
Um golpe preciso e seco:
— Liberdade pertence apenas a quem não deve nada. Você não é uma pessoa. Pertence a um projeto.
A sentença foi definitiva.
O silêncio da aceitação preencheu o espaço. Mas algo dentro de Dayse começava a agitar-se. Não era medo. Era um cansaço profundo, um desgaste que ia além do físico.