A casa estava silenciosa, como se soubesse que eu precisava de um pouco de paz. Giulia já tinha subido para o quarto com Isabella, e eu fiquei alguns minutos parado na sala, com as chaves ainda na mão, olhando para o nada. A bolsa da Isa estava encostada no sofá, a de Giulia no chão, com um dos brinquedos escapando por entre o zíper. Um cenário normal. Familiar. Mas havia algo em mim que não era.
Sentei-me na poltrona perto da janela. A luz do fim da tarde pintava a sala com tons dourados e quentes. Fechei os olhos e deixei a cabeça tombar para trás. O cheiro da comida ainda estava no ar — um resquício do restaurante em que estivemos mais cedo. Tinha sido um bom almoço. Giulia riu, Isa se encantou com as histórias que contei da minha avó... e eu me peguei observando Isa mais do que deveria. N
Acordei antes do despertador.O céu de Sevilha ainda estava num tom pálido, misturado entre cinza e azul, e a luz fraca que entrava pelas frestas da cortina deixava o quarto com uma tranquilidade adormecida. Giulia dormia no quarto ao lado, respirando devagar como quem não tem pressa de acordar para o mundo.Mas eu já estava desperta — e inquieta.A noite anterior parecia ter deixado uma marca em mim. As palavras de Miguel, a forma como ele me ouviu, os olhos atentos, sem julgamento. E, principalmente, aquele último instante antes da despedida. Aquele quase toque. O silêncio cheio de tudo que não dissemos.Me vesti devagar e fui até o quarto de Giulia. Ela abriu os olhos assi
Giulia estava deitada de bruços no tapete da sala, desenhando com canetinhas espalhadas por toda parte. O sol da tarde atravessava as cortinas brancas, projetando sombras suaves nas paredes, e por um momento, tudo parecia tranquilo. Tão tranquilo quanto minha vida conseguia ser ultimamente.Me sentei no sofá, observando os movimentos pequenos e concentrados da minha filha. Ela mordia a ponta da língua ao tentar desenhar um coração perfeito, e achei aquilo absurdamente bonito. Delicado. Quase frágil.— Papai? — ela me chamou sem levantar o rosto.— Hum? — respondi, já sentindo que vinha pergunta difícil. Ela sempre tinha uma dessas guardadas.—
O abraço se desfez devagar, mas Miguel não me soltou por completo. Seus dedos ainda estavam presos às minhas costas, como se temesse que eu fosse desaparecer se me afastasse demais. Quando nossos olhos se encontraram, aquele mesmo calor que eu vinha evitando há semanas voltou a queimar na minha garganta.— Você vai me beijar? — a pergunta saiu baixa, quase um desafio.Ele não hesitou.— Sim.E então, seus lábios encontraram os meus. O primeiro toque foi suave, quase hesitante, como se ele ainda duvidasse que tinha permissão para estar ali. Mas quando eu respondi ao beijo, puxando-o mais perto pelas laterais da sua camisa, algo se quebrou dentro dele.Miguel gemeu contra
Capítulo – MiguelO cheiro de café fresco me guiou até a cozinha antes mesmo que eu abrisse totalmente os olhos. Ainda meio zonzo — mas num bom sentido, aquele tipo de exaustão que só vem depois de uma noite intensa —, desci as escadas com um sorriso idiota no rosto.Não era o tipo de homem que sorria sem motivo. Mas hoje... bem, hoje eu tinha um motivo muito bom.Isa.Meus pés mal tocaram o último degrau e, quando me aproximei da cozinha, o som de vozes me alcançou.— Não, Giulia, assim não, amor... senão vai cair tudo da colher. Devagar... Isso! Viu como você consegue? — A voz de Isa era suave, paciente.Me apoiei no batente da porta por um segundo, só observando. Isa estava sentada ao lado de Giulia, ajudando minha filha a tomar iogurte de uma tigela com desenhos de unicórnio. As duas riam. Giulia com a boca manchada de morango. Isa com o cabelo preso num coque desajeitado, vestindo uma camiseta larga — uma das minhas, percebi com uma pontada de satisfação — e uma calça de moletom.
O sol de Sevilha já começava a aquecer as ruas de pedra quando peguei a mãozinha de Giulia e a conduzi para fora do carro. Ela saltitava ao meu lado, o vestido leve balançando, o sorriso iluminando o mundo como só ela sabia fazer.Decidi que hoje seria um dia só nosso. Precisávamos disso — eu precisava disso.— Onde a gente vai, papai? — ela perguntou, olhando para cima com os olhos curiosos.Sorri, apertando seus dedos pequenos entre os meus.— Vamos tomar café naquela cafeteria que você gosta. A que tem churros.Ela soltou uma risadinha animada e correu na frente, me puxando pela mão. O cheiro de açúcar e café recém-passado preencheu o ar assim que empurramos a porta de vidro.Sentamo-nos em uma mesinha perto da janela, e logo uma moça simpática veio nos atender. Pedi um café forte para mim, chocolate quente para Giulia e, claro, uma porção generosa de churros.Enquanto esperávamos, observei minha filha apoiando o queixo nas mãos, olhando as pessoas passando lá fora. Tão pequena, tã
O som dos saltos de Carmen ecoava discretamente no corredor enquanto ela se aproximava da minha sala. A mulher tinha um jeito firme e maternal que sempre me acalmava, como se fosse uma âncora em meio à bagunça que às vezes minha vida se tornava.Estava sentado atrás da mesa, girando uma caneta entre os dedos, olhando para a tela do computador sem realmente enxergá-la. Meus pensamentos estavam longe — muito longe.Em Isabella.Em Giulia.Em nós.Carmen bateu na porta de madeira antes de entrar com sua costumeira eficiência.— Señor De La Vega, trouxe os contratos para o senhor revisar antes da reunião de amanhã.Assenti, aceitando a pasta que ela me estendia. Mas ela não se moveu para sair.Seus olhos atentos, já marcados por anos de vida e sabedoria, me estudaram com atenção.— Está tudo bem, Miguel?Suspirei, largando a caneta sobre a mesa.— Não, Carmen. — Confessei, a voz mais baixa do que pretendia. — Eu não sei o que fazer.Ela sorriu com ternura e fechou a porta atrás de si, com
Giulia saiu da escola com a mochila meio caída no ombro e os cabelos já bagunçados pelo vento de Sevilha. Ainda assim, sorriu ao me ver encostada no carro, e correu para me abraçar como se não tivesse me visto havia dias. Ela tinha esse dom de transformar tudo em casa — em calor. Bastava um sorriso.— Tô com fome! — disse, segurando minha mão enquanto caminhávamos até o carro. — Hoje teve carne estranha no almoço da escola.— Estranha como? — perguntei, rindo.— Parecia sapato velho.Soltei uma gargalhada.— Então tá bom. Vamos fazer algo gostoso em casa. Que tal arroz, ovo e tomate? Do jeito que você gosta?— E queijo ralado por cima? — Ela arregalou os olhos.— Claro!Enquanto dirigia de volta para casa, meu coração estava uma confusão de sentimentos. Eu ainda não acreditava que tinha aceitado o convite de Miguel. Um jantar. Só nós três. Ou seria um jantar de dois com uma companhia adorável?Eu não sabia. E isso me deixava nervosa.---Estávamos sentadas à mesa, com nossos pratos ch
O sol já se punha sobre São Paulo quando finalmente saí da faculdade. Meus pés doíam depois de horas em pé, limpando quartos de hotel antes das aulas, e minha mochila parecia pesar o dobro do normal com os livros que eu mal tinha tempo de abrir. O cansaço era tanto que até respirar parecia exigir um esforço extra.Com um suspiro, caminhei até o ponto de ônibus, onde já se formava uma pequena multidão de pessoas igualmente exaustas. O trânsito caótico da cidade não perdoava ninguém, e o ônibus que eu precisava pegar sempre demorava mais do que deveria. Enquanto esperava, encostei minha mochila no chão e fechei os olhos por um instante, tentando me convencer de que ainda tinha energia para o trajeto de quase uma hora até casa.Quando o ônibus finalmente chegou, quase não consegui subir os degraus.Meu corpo pedia descanso, mas minha mente sabia que o dia ainda não tinha acabado. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e deixei minha mochila no c