A casa estava mergulhada em silêncio.Giulia dormia profundamente há pelo menos meia hora. Depois de um dia inteiro correndo atrás de piratas e comendo balas coloridas, ela apagara assim que encostou a cabeça no travesseiro.Eu desci para pegar um copo d’água e encontrei Miguel na cozinha, encostado na bancada, com uma xícara de chá nas mãos. Ele vestia uma camiseta cinza simples e uma calça de moletom escura. Descontraído. Um pouco desarrumado. E perigosamente encantador.— Chá? — ofereceu, ao me ver entrar. — Ainda tem um pouco da mistura que você trouxe do mercado.— O de camomila com limão? — sorri. — Meu favorito.Ele preparou uma caneca e me entregou. Nossos dedos se tocaram por um segundo e, como sempre, a faísca discreta apareceu. Mas, como sempre também, fingimos que não sentimos.Sentei na cadeira da cozinha enquanto ele voltava para a bancada, girando lentamente a própria caneca nas mãos.— Ela está tão feliz, Isa. — A voz dele era baixa. — Acho que... faz tempo que não via
A sala de reuniões ainda cheirava a café morno e frustração. A apresentação tinha corrido bem, mas eu mal consegui prestar atenção. Sorrisos ensaiados, comentários técnicos, promessas para o próximo trimestre... nada parecia importar.Saí de lá com o nó apertado no estômago.Voltei para minha sala, me joguei na cadeira de couro e encarei o teto por alguns segundos, como se ali fosse encontrar uma resposta que meu coração se recusava a formular.Carmem entrou sem bater — como sempre fazia — equilibrando uma bandeja com duas xícaras de café e a agenda do dia impressa.— Bom dia outra vez, chefe — disse com aquele sorriso maternal de quem me conhece há mais de vinte anos. — Reunião encerrada e sem grandes dramas. Estou quase chocada.— Quase — repeti, tentando sorrir, mas não saiu.Ela largou a agenda na mesa, puxou a caneta do coque impecável e começou a repassar os compromissos do dia.— Às treze, almoço com o doutor Álvaro na Cantina do Centro. Às quinze e trinta, conferência com a eq
Acordei antes do despertador tocar.Não era exatamente um feito raro — o sono tem me escapado com frequência nos últimos meses. Mas naquela manhã, havia algo diferente no ar. Talvez fosse o cheiro de café vindo da cozinha, ou o som abafado da voz suave de Isabella cantando baixinho uma música infantil. Ou talvez fosse só essa inquietação que tenho sentido desde que ela chegou — uma presença silenciosa que, aos poucos, tem se infiltrado nos espaços onde antes só existia ausência.Desci as escadas devagar, ainda sem gravata, os botões da camisa meio tortos. A cozinha estava banhada pela luz morna do sol da manhã. Isabella estava de costas, os cabelos presos em um coque improvisado, o avental florido um pouco torto no corpo esguio. Giulia estava sentada à mesa, balançando as perninhas, desenhando algo com lápis de cor.— Bom dia — murmurei, e as duas viraram ao mesmo tempo.Giulia abriu um sorriso largo. Isabella sorriu também, mas de um jeito mais contido, respeitoso. Ainda assim, seus
O silêncio da casa no meio da tarde era uma bênção rara. Giulia tinha acabado de sair com o pai — um passeio rápido até a livraria para comprar um livro novo para o projeto de leitura da escola. Eu tinha ficado para trás por escolha própria. Queria lavar o cabelo com calma, organizar as coisas da semana e, principalmente, ligar para o Brasil.Fazia alguns dias que minha mãe não mandava nenhuma mensagem, o que, no nosso caso, sempre era um mau sinal. Ou ela estava sobrecarregada com os turnos no hospital, ou... algo tinha acontecido com meu pai.Sentei no sofá da varanda com o celular nas mãos, as pernas cruzadas, o coração já em descompasso. Liguei. Ela atendeu no terceiro toque.— Isa, filha!A voz dela tinha aquele calor familiar, mas algo no tom me pareceu hesitante. Mãe sempre sente.— Oi, mãe. Tá tudo bem por aí?Ela suspirou do outro lado da linha. E foi nesse suspiro que eu soube que alguma coisa tinha mudado.— Eu ia te ligar hoje. Não queria te preocupar antes...— Aconteceu
Fiquei observando Giulia dormir por longos minutos depois de colocá-la na cama. Ela ainda segurava o livrinho novo contra o peito, os cílios longos descansando nas bochechas coradas. Parecia tão em paz que doía saber o quanto essa paz tinha custado caro. Principalmente para ela.Fechei a porta do quarto devagar e desci, sabendo que Isabella ainda estava acordada. O cheiro de chá vinha da cozinha, misturado ao som abafado de louça sendo organizada. O som do cotidiano que, de alguma forma, agora me acalmava.Ela me olhou ao me ver entrar. O cabelo preso em um coque improvisado, uma blusa velha que usava em casa e os olhos — sempre os olhos — atentos, gentis.— Chá? — perguntou, erguendo a chaleira.
A tarde caiu devagar naquele domingo preguiçoso. Giulia dormia há mais de uma hora, depois de correr pelo jardim com a energia de uma criança que ainda não percebe que o mundo pode ser cruel.Eu estava no escritório, revisando alguns documentos que Carmem havia deixado em minha pasta. Ainda era cedo pra retomar compromissos de verdade, mas algo em mim queria me manter ocupado. Ou talvez... apenas distraído.Ouvi passos leves no corredor, e logo depois, Isabella surgiu na porta.— Espero não estar interrompendo — disse, com a voz suave, apoiando-se no batente da porta com um copo d’água na mão. — Você me disse que eu poderia pegar os... livros caso quisesse ler.
O céu de Sevilha estava começando a escurecer, tingindo o fim de tarde com tons alaranjados e suaves. Eu observava pela janela da cozinha o balançar calmo das folhas no quintal, enquanto o vapor da xícara de chá aquecia minhas mãos.Giulia tinha dormido cedo, cansada da agitação dos últimos dias — e talvez também sentindo, ainda que sem entender, o turbilhão que pairava sobre os adultos ao seu redor.Miguel tinha se trancado no escritório depois de colocá-la na cama. Eu sabia que ele precisava de espaço. Talvez eu também precisasse.Mas meu coração estava apertado.Tão apertado que a única coisa que consegui fazer foi pegar o celular, calçar os chinelos e ir até o quarto de hóspedes onde eu dormia — onde, de alguma forma, vinha tentando manter um limite imaginário entre a minha vida e a deles.Sentei na beira da cama, puxei o cobertor sobre os ombros e disquei o número que sempre me dava alguma forma de chão. O número da minha mãe.Ela atendeu na terceira chamada.— Isa? Tá tudo bem,
O cheiro do café ainda preenchia a cozinha quando terminei de colocar a lancheira de Giulia na mochila rosa com detalhes de unicórnios. Miguel tinha saído mais cedo, mencionando uma reunião importante. Eu nem o vi direito — só ouvi a porta se fechando e os passos apressados no corredor. Desde o beijo... as coisas tinham ficado um pouco diferentes. Um pouco mais silenciosas. Um pouco mais carregadas de pensamentos que nenhum dos dois conseguia traduzir em palavras.Mas Giulia não mudava. Ela era o fio de luz em meio ao emaranhado.— Isa, você pode fazer a trança de princesa hoje? — pediu, sentando-se no banco da penteadeira do quarto com a escova já nas mãos.Sorri, pegando delicadamente o pente.— Claro que posso. Mas tem que ficar bem quietinha, princesa.Ela assentiu com convicção e, enquanto eu começava a separar as mechas de cabelo dourado, ela ficou olhando nosso reflexo no espelho.— Isa... — a voz dela veio baixinha, quase como um segredo. — Você vai embora igual a mamãe?A per