A mata se abriu lentamente diante da matilha que voltava em silêncio, deixando atrás de si o cheiro de sangue queimado e magia dissipada. Cassian caminhava à frente, o corpo coberto por uma manta escura que também protegia a figura frágil em seus braços. Ela dormia com o rosto colado ao peito dele, a respiração ainda irregular. O calor da pele dela era uma promessa incômoda, mas não era só isso. Ela sussurrava algo... antigo.
Ao atravessarem os portões do clã, o silêncio foi quebrado por murmúrios e olhares desconfiados. Ninguém ousou se aproximar. Ninguém além de Mira. — Ela está bem? — perguntou a beta, acompanhando o ritmo apressado do alfa. — Vai ficar — murmurou Cassian. — Preciso que você se certifique que ninguém vá até a ala norte, vou acomodar ela próxima ao meu quarto, assim é mais fácil ficar de olhos. — Sim, alfa. — Ela assentiu, rápida, e sumiu pelos corredores. Cassian levou-a para um dos quartos onde o som da floresta ainda podia ser ouvido pelas janelas altas. Deitou-a sobre os lençóis limpos e se afastou por instinto, mas algo o puxou de volta. Observou o rosto sereno e confuso da mulher. Ela era não se parecia em nada com sua Luna. Os cabelos eram pretos e não loiros, o rosto mais delicado, os lábios cheios e desenhados, diferentes dos de sua esposa que eram afiados e passavam a impressão de estar sempre concentrada. E ainda assim, era como se fossem a mesma pessoa. Cassian respirou fundo, afastando o pensamento como se fosse uma armadilha. Pegou roupas limpas e uma toalha. Cobriu o corpo dela com delicadeza, evitando encará-la por muito tempo, sentindo-se como um intruso dentro da própria memória. Antes de se sentar na beira da cama ele foi até seu quarto e vestiu a primeira coisa que viu: uma calça de moletom e uma camisa branca qualquer. A Mulher acordou duas horas depois, com um gemido baixo. Cassian passara todo aquele tempo sentado na poltrona, observando ela. Os olhos dela se abriram devagar absorvendo todo o quarto até encontrar os dele. — Onde estou? — Em segurança — respondeu ele, baixo. — No forte dos lobos. Cassian não queria assustar ela, mas era como se seu corpo estivesse lutando contra um fio que o puxava na direção do dela. Ele levantou-se e foi em passos lentos até sentar na beira da cama. — Sou Cassian, o alfa dessa alcateia. — Ele sorriu sem jeito. Ficar perto daquela mulher estava acabando com seu psicológico. — Qual o seu nome? Ela hesitou. Depois, com a voz rouca disse: — Me chamavam de Saryn. Cassian assentiu. Uma dor antiga percorreu seu peito. — Saryn... — repetiu, como quem prova algo novo. — Eu devia deixar você descansar... — Espere! — Saryn agarrou o pulso dele. — Desculpe alfa. Ela o soltou o mais rápido que pode, mas Cassian continuou a sentir o aperto da mão dela em seu pulso. — Não, tudo bem — ele se apressou a dizer. — O que você queria dizer? — Eu só... sinto que devo agradecer o que fez por mim. — Não tem que agradecer por isso. — Eu tenho, alfa. — Saryn interrompeu. — Eu não sobreviveria muito mais lá, não sei porque elas me queriam e nem como cheguei lá... minhas memórias... — Ela pressionou as mãos na cabeça como se sentisse dor. — Obrigada. Você me salvou. Cassian sentiu o peito apertar. Ali estava seu maior pesadelo: o fato de que não conseguiu salvar sua esposa da morte. E agora aquela mulher, que tinha o cheiro dela, que fazia seu coração vacilar como sua Luna fazia, estava dizendo que ele havia lhe salvado. Ela o observou em silêncio, sem compreender as emoções que estavam passando por sua cabeça. — Eu quem devo agradecer, Saryn. — Ele falou baixo. — Agora você deve descansar, mas tarde passo aqui para vê-la novamente. Vou mandar Mira vir aqui nesse meio tempo, ela vai trazer comida e roupas para que você possa se trocar. A sala de pedra no subsolo era abafada, sem janelas, e o cheiro de sangue fresco impregnava o ar como ferrugem. As tochas dançavam em suportes nas paredes, projetando sombras distorcidas sobre os rostos tensos. A bruxa estava presa no centro da sala, as pernas e braços abertos, acorrentados com ligações de prata, queimando lentamente sua pele com cada movimento. Mira dispunha cuidadosamente uma série de lâminas pequenas sobre uma bandeja de aço, ao lado de um frasco com um líquido opaco e fumegante, essência de arruda negra, conhecida por ser altamente corrosiva. Cassian permanecia encostado à parede, de braços cruzados, olhos fixos na prisioneira com um foco vazio. Havia algo errático em seu silêncio, uma tensão que nem Thorne ousava quebrar. — Está confortável? — perguntou Mira, sorrindo de forma quase gentil, enquanto mergulhava a ponta de uma das lâminas na essência. Um chiado agudo preencheu o ar. — Já estive melhor — respondeu a bruxa, com a voz rouca, olhos semicerrados de dor. Mira se aproximou e deslizou a lâmina quente sobre o abdômen da prisioneira. Um corte superficial... a princípio. A bruxa estremeceu, mas não gritou. Só apertou os lábios, sentindo o líquido queimar a pele. — Vai ser uma noite longa — comentou Thorne bocejando. Mira fez mais dois cortes em forma de cruz, enfiando as lâminas mais fundo dessa vez. A bruxa gritou. Um som agudo, animal, reverberando pela câmara. — Qual o seu nome? — insistiu Mira. — Vai se foder. Cassian se aproximou, sem dizer nada. Estava cansado. Seus olhos carregavam algo mais, algo que a bruxa percebeu tarde demais. Ele ergueu o queixo dela, as garras de lobo tomando os dedos de forma ameaçadora quando ele murmurou: — O que ela é? A bruxa riu. O sangue escorreu pelo queixo. — Uma falha, alfa. Cassian se afastou apenas para pegar uma das lâminas da bandeja de Mira. A bruxa não estava preparada para quando o alfa enfiou o objeto em seu ombro. Cassian não desviou os olhos dos dela enquanto girava a lâmina na carne da bruxa. — Explique. O corpo da bruxa se arqueou. Seus olhos se reviraram. Ela começou a murmurar, uma mistura de súplica e insulto em uma língua antiga.. — Ela... ela é um receptáculo. Só isso — sussurrou a bruxa. — Uma garota morta. Usamos o corpo dela para trazer alguém de volta. — Quem? — Acho que você já sabe, alfa. Cassian sentiu um arrepio tomar sua pele e se afastou da bruxa como se ficar perto dela fosse contagioso. — Do que ela está falando? — Thorne se aproximou, estreitando os olhos. — O que vocês iam fazer com ela? — O alfa perguntou, ignorando Thorne. — Usar contra você. — Ela soltou uma gargalhada sufocada. — Esse território já foi das bruxas antes do seu povo tomá-lo... a garota era só mais uma peça nesse enorme tabuleiro. Cassian se afastou, respirando fundo. — E como pretendiam fazer isso? A bruxa riu e fechou negou com a cabeça. — Mira. — O alfa sinalizou para que a loba usasse outra de suas lâminas. Mira começou a desferir cortes na pele da bruxa com as lâminas envenenadas até que ela começasse a gritar. — Iríamos oferecer uma troca!! — Ela gritou. — Iríamos trocar ela pelo território que é nosso por direito, e então usaríamos a influência que tínhamos sobre ela para acabar com você, alfa. — Influência? — Thorne perguntou. — O feitiço que usamos nela... poderíamos controlar a garota como uma marionete. Ele se lembrava de olhos verde musgo de Saryn. Os cabelos espalhados sobre o travesseiro, seu semblante angelical enquanto ela dormia e sentiu o ódio dominar seus pensamentos. Como poderiam ter machucado tanto sua Luna. Não! Ela não era a sua Luna. Não poderia ser verdade o que a bruxa insinuou, elas não conseguiriam trazer alguém dos mortos. — Mira, Thorne, saiam. — Disse ele. Quando se viu sozinho com a bruxa, perguntou: — É a minha Luna no corpo dela? — Não acredita, alfa? — Isso é impossível, bruxa! — Ele rosnou irritado. — O poder de Lerya surpreendeu a todas nós. — Lerya? — Ele se sobressaltou. — A bruxa ancestral? — Ah! eu vejo — Ela riu. — Agora acredita que é possível, alfa? Uma bruxa ancestral trouxe sua Luna dos mortos... uma pena que a garota esteja quebrada. — Quebrada? — Você irá descobrir se for mantê-la aqui. — A bruxa observou seu corpo sangrando como se só percebesse agora. — O que eu acho que vai... boa sorte. O alfa sabia que não conseguiria arrancar mais nada dali, dando-se por vencido, deixou que as garras voltassem a sair pelos dedos e quando ergueu a mão, viu os olhos esbugalhados da bruxa antes de rasgar sua garganta.