A água escorria quente pelos ombros de Saryn, como se quisesse arrancar dela não apenas a sujeira dos últimos dias, mas qualquer vestígio de memória. As mãos cuidadosas de Mira se moviam com delicadeza sobre seus cabelos, massageando o couro cabeludo com uma intimidade gentil demais para ser desconfortável.
— Não vai doer — disse a jovem, espremendo um pouco do sabão líquido em suas mãos. — Esse aqui é de lavanda com flor de jasmim. As crias odeiam, dizem que cheira a velha rica, mas eu acho uma delícia. Saryn assentiu, sem saber muito bem o que responder. O aroma era mesmo agradável, mas não despertava nela nenhuma memória específica. Nada despertava. — Faz tempo que alguém cuidou de você assim? A pergunta soou como um afago, mas Saryn engoliu em seco. Tentou procurar alguma lembrança, uma mãe, uma irmã, uma amiga. Mas o vazio respondeu em seu lugar. — Não lembro — disse ela, baixo. Mira pareceu notar o desconforto e mudou de assunto com leveza. — Bom, você chegou num bom momento. O clima anda tenso desde que o Alfa perdeu o esposa, é bom ter outros assuntos para se ocupar. — E eu fui a escolhida? — Não, — Mira sorriu com os olhos. — Eu diria que você aconteceu, simplesmente. Ela desligou a água e estendeu uma toalha grossa, bordada com linhas prateadas que refletiam a luz. Saryn saiu da banheira lentamente, sentindo o calor se dissipar com o toque frio do ar. Mira a envolveu com cuidado, secando primeiro os braços, depois as costas. — O Alfa não costuma ajudar ninguém. Ele… não gosta de criar dívidas. Só que por algum motivo, você foi diferente. Ele não conseguiu parar até que você estivesse segura e longe das bruxas. — O que aconteceu com elas? — Estão mortas. — Mira observou a reação de Saryn, mas ela não expressou nada. — O alfa esteve interrogando uma delas. — O que ela disse? Falou algo sobre mim? — Desculpe, acho que não posso falar sobre isso. — Claro, desculpe. — Saryn falou tristemente. — Não é isso... só acho que esse é um assunto que cabe ao alfa falar com você. — Ela apertou a mão de Saryn com carinho. Saryn franziu a testa. Aquele ato, era como se ela já tivesse vivido aquilo, imagens ecoaram dentro dela como peças soltas de um quebra-cabeça que deveria conhecer, mas não conhecia. — Ele é um homem bom? — perguntou. Mira hesitou. — Nenhum homem na posição dele consegue ser um homem totalmente bom. — Mira pareceu pensativa. — Mas de todos os que eu conheci, ele é único que se esforça para ser. Enquanto falava, Mira a guiava até um banquinho acolchoado diante de um espelho ornamentado. Começou a pentear os cabelos de Saryn com um cuidado quase cerimonial, como se estivesse lidando com uma peça rara e frágil. — Ele tem cicatrizes que são difíceis de curar. — comentou, quase para si. — Perdeu a esposa, sua Luna. Ele nunca superou essa dor. Saryn sentiu um calafrio. Um lampejo cruzou sua mente, mãos ensanguentadas, um corredor escuro, gritos abafados. Mas desapareceu antes que pudesse se agarrar à imagem. — Você está bem? — Mira questionou. — Às vezes… isso acontece — murmurou ela, encarando o próprio reflexo como se ele pudesse responder em seu lugar. — É como se alguma coisa estivesse presa aqui dentro. Mas não consigo ver direito. Como tentar lembrar de um sonho enquanto ainda se está dormindo. Mira parou de pentear. — Você não lembra de nada? — Nada. Nem do meu nome até que as bruxas me disseram. A outra mordeu o lábio inferior, pensativa. — Isso pode ser uma bênção… ou uma maldição. Por aqui, esquecer pode ser a única chance de sobreviver. Saryn desviou o olhar. No fundo, ela já sabia disso. Um leve toque à porta fez Mira se endireitar imediatamente. Ela trocou um olhar com Saryn antes de ir atender. A madeira rangeu, e uma voz baixa, quase grave demais para ser chamada de gentil, preencheu o corredor. — O alfa quer vê-la. Mira abriu mais a porta, revelando um homem alto, de traços austeros e expressão impenetrável. Os cabelos castanho-escuros estavam presos em um coque baixo, e uma cicatriz descia da sobrancelha até a metade da bochecha, dando-lhe um ar de quem já vira mais do que devia. — Thorn — disse ele em saudação, sem olhar diretamente para Saryn. — Pode vir comigo. Saryn se levantou devagar, os cabelos ainda úmidos colando-se ao pescoço. Mira ajeitou a barra da túnica que ela usava e apertou seu ombro em silêncio, como quem deseja sorte, mas não ousa dizê-lo em voz alta. Thorn não disse uma palavra enquanto caminhavam pelos corredores de pedra polida. O lugar era grande, mas não luxuoso, funcional, silencioso, marcado pelo cheiro de madeira, terra úmida e algo mais antigo. Havia tapeçarias nos corredores, retratos sem nome, espadas enferrujadas cruzadas sobre portas. O caminho terminou diante de uma porta dupla, mais larga e robusta que as outras. Thorn bateu duas vezes, aguardou a permissão e então abriu, deixando Saryn entrar sozinha. Cassian estava em pé, de costas para ela, diante de uma estante tomada por livros. A sala era ampla, com janelas altas e paredes cobertas por mapas, armas e documentos. Um brasão em metal reluzia acima da lareira apagada: um lobo de olhos cintilantes. — Sente-se — disse ele, sem se virar. Saryn hesitou por um segundo, depois obedeceu, tomando o assento diante da mesa. Cassian virou-se lentamente. Vestia uma camisa preta com as mangas dobradas, e o olhar que lançou sobre ela era avaliador, frio como aço molhado. — Você parece melhor — comentou. — Mérito da Mira. — Que bom que vocês se deram bem. Ela assentiu, encostando-se na cadeira. — Eu quero conversar sobre o que você lembra. E sobre o que não lembra. Ela respirou fundo. — Já disse que não sei de nada. Nem quem eu sou, nem por que estava com aquelas bruxas. — Eu sei, mas... não consegue se esforçar, não sei, tentar lembrar de algo? Saryn manteve o silêncio, o coração disparado. — Não quero pressionar você. — Ele disse. — É só que preciso ter certeza de algo. Ela franziu a testa, assustada. — Eu... não sei o que isso significa. Cassian se aproximou, andando ao redor da mesa. Seu cheiro era diferente do sabão de lavanda, era terra fresca e um toque sutil de pinho. — Interroguei uma das bruxas, a única que ficou viva, ela confessou que você é um receptáculo. — Um... um receptáculo? — Saryn gelou. — Sim, mas calma, não tenho certeza se ela disse a verdade, é isso que quero descobrir e seria útil que tivesse alguma informação. — Mas não sei como poderia ajudar. — Lerya. — Ele falou. — Você já ouviu falar nesse nome? — Sim, eu... acho que sim. — Sua voz tremeu. — Uma delas, das bruxas, se chamava Lerya. Silêncio. — Porra. — Cassian passou as mãos pelo rosto. — Pode ser verdade, então. — Isso é ruim? — Ainda estou tentando descobrir — disse ele. — Enquanto isso vamos manter você em segurança. — Eu não vou fugir. — Eu sei... — O alfa disse, a voz ficando embargada. — Você nunca fugiu e mesmo assim já perdi você uma vez, não posso perder novamente.