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Capítulo 8 — Entre Lobo e Fera

(POV Selene)

A noite anterior tinha sido um peso esmagador. Depois do treino, meus braços tremiam tanto que eu mal conseguia segurar a colher que Caelan me empurrou com um sorriso debochado, oferecendo algo quente dentro de uma tigela de metal. Eu não queria aceitar nada das mãos dele, mas o cheiro de carne cozida e ervas me venceu.

O fogo improvisado estalava baixo, mas não aquecia o bastante. A floresta parecia respirar ao redor, cada farfalhar de folha soando como passos. Dorian ficou imóvel na entrada, mas eu sabia que ele não relaxava nem por um segundo. Ronan, sentado perto das lâminas, passava o pano pelo fio como se fosse ritual. Caelan, claro, parecia estar em uma taverna, não no meio de um acampamento, rindo sozinho de um pensamento qualquer. Eles eram três mundos diferentes, e eu estava perdida no meio deles.

— Não se preocupe, estrelinha. — murmurou, apoiado de forma preguiçosa contra a parede de madeira improvisada da cabana. — Se eu quisesse te envenenar, já teria feito.

Ronan não comentou, mas seus olhos acompanharam cada colherada que levei à boca, como se medisse até a forma como eu mastigava. Já Dorian parecia alheio, parado de guarda na entrada, o corpo imóvel, mas os olhos em alerta. Eu me senti observada de todos os lados.

Quando terminei de comer, o silêncio foi minha única companhia. Não houve conversa, não houve explicações. Apenas me deixaram estender um cobertor áspero sobre o chão duro da clareira. O corpo cedeu antes da mente, e adormeci cercada pelos cheiros da floresta e pelo peso invisível da marca queimando no pulso. O chão duro me machucava as costas, mas a exaustão venceu. A cada vez que fechava os olhos, lembrava do bastão estalando contra o meu, do olhar frio de Ronan, do silêncio de Dorian, da gargalhada de Caelan. Eles se infiltravam até nos meus sonhos, como se eu não tivesse mais espaço só meu.

Sonhei com olhos me observando. Sonhei com passos ao redor do meu corpo. Sonhei com a voz de Ronan me ordenando, a de Dorian me vigiando e a de Caelan rindo no fundo da minha mente. Quando abri os olhos, o dia já estava começando.

O sol não nasceu de verdade. Apenas clareou o céu num cinza pálido. O frio da manhã entrava pelos ossos e fazia a pele arder. Eu tentei me levantar, mas cada músculo protestou como se tivesse sido rasgado. Os músculos reclamaram de cada movimento. Meus braços estavam pesados, as mãos doloridas como se tivessem sido arrancadas e devolvidas no lugar errado. Respirei fundo e percebi que ainda podia sentir o ritmo dos golpes na pele, como se a madeira tivesse deixado marcas invisíveis.

Eles, por outro lado, já estavam de pé. Ronan afiava lâminas com calma, como quem respira. Dorian vigiava a mata, rígido como aço, atento a cada movimento das árvores. Caelan descansava encostado em um tronco, girando uma pedra na palma da mão, sorrindo como se o mundo não fosse tão cruel.

— Achei que não fosse levantar. — disse ele, sem tirar os olhos de mim. — Já ia pedir para Dorian te carregar como uma donzela desmaiada.

— Pode sonhar. — respondi, a voz rouca. — Eu levanto sozinha.

O sorriso dele se abriu mais, satisfeito.

Ronan se ergueu. — Não tem tempo para preguiça. Hoje continua.

— Continua o quê? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.

— Treino. — disse, simples. — Até o corpo entender.

— Pensei que fosse aula teórica hoje. — ironizei, tentando ganhar tempo.

— Teoria não salva vida. — Ronan devolveu, seco, empurrando o bastão contra o meu peito.

— E paciência, salva? — rebati.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Não comigo.

Dorian suspirou, mas não contestou.

Voltamos ao centro da clareira. O chão estava úmido, o cheiro de terra molhada e musgo mais forte depois da madrugada. Ronan me entregou o bastão de novo.

— Mente quieta. Corpo alerta. — disse ele.

O primeiro impacto me lembrou de tudo. O bastão não era mais estranho, mas ainda pesado. Cada estalo ecoava pela clareira, misturando-se ao som da floresta viva.

O suor escorria até arder nos olhos, turvando minha visão. As mãos queimavam de tanto apertar o bastão. Eu quase escorreguei duas vezes, mas forcei os pés no chão, lembrando das palavras dele: “Equilíbrio vem dos pés, não dos braços.”

— Melhor. — Ronan assentiu. — Mas lenta.

— Ela está cansada. — Dorian comentou, voz carregada.

— O inimigo não espera ela descansar. — Ronan rebateu.

De novo, o ar pesou entre eles. Eu, no meio, me sentia uma corda prestes a arrebentar.

Caelan, claro, não perdeu a chance. — É delicioso ver vocês brigando por causa dela. — disse, preguiçoso. — Mas se querem saber, ela se move melhor quando esquece vocês dois.

Ele se aproximou, como se fosse me corrigir. Segurou meus dedos no bastão, devagar, o toque leve demais para ser inocente.

— Você treme, estrelinha. — disse, os olhos cravados nos meus. — Mas não é medo. É fome.

Arranquei a mão com força, sentindo o rosto queimar.

— Eu não sou como você.

— Ainda não. — ele sorriu, voltando a se encostar no tronco.

Revirei os olhos. — Você não ensina nada, só provoca.

— Provocar também é ensino, estrelinha. — ele piscou. — O instinto responde mais rápido quando alguém cutuca.

As palavras dele grudaram na minha mente. Talvez fosse verdade.

O treino seguiu até minhas mãos arderem. O bastão já parecia parte de mim. Então veio o cheiro. Não era madeira, nem terra. Era ferro podre, como sangue velho misturado a carne apodrecida.

Meu estômago revirou.

— Vocês sentiram isso?

Era um cheiro tão forte que me lembrou da oficina enferrujada perto da minha rua, misturado ao fedor de carne esquecida no quintal da vizinha. Só que multiplicado, vivo, quase sólido no ar. Tossi, engasguei, como se pudesse me sufocar só por existir.

Ronan parou de atacar. — Sim.

Dorian já estava em movimento, lâmina em punho, corpo pronto.

A mata quebrou ao redor. Olhos brilharam no escuro. Não eram humanos. Não eram lobos comuns. Eram algo no meio do caminho, distorcido, errado.

Meu coração disparou. A cicatriz queimou.

— Instinto. — Ronan disse apenas isso.

O primeiro deles saltou. O bastão girou nas minhas mãos antes mesmo que eu pensasse. O impacto fez a criatura recuar com um grito agudo. Outro veio por trás. Girei, bloqueei, o choque sacudiu meus ossos.

Um grito escapou da minha garganta, selvagem, que não parecia meu. O bastão bateu com força, arremessando o inimigo contra uma árvore. O estalo seco do impacto ecoou.

Ronan gritou uma ordem curta: — Mais baixo! — e eu obedeci sem pensar, desviando por centímetros de uma garra que teria rasgado meu ombro. Dorian atravessava a clareira como sombra, lâmina em punho, cada movimento dele rápido demais para acompanhar. Eu não era como eles, mas, pela primeira vez, meu corpo parecia falar a mesma língua.

Caelan gargalhou. — Isso! Mostra quem manda, estrelinha!

Respirei ofegante. As criaturas recuavam, mas seus olhos continuavam brilhando. Então, um uivo longo cortou a floresta.

Não era aviso. Era chamado.

O silêncio caiu como faca. Até o vento pareceu parar.

Ronan e Dorian se entreolharam. Caelan apenas sorriu, sombrio, como se já soubesse que aquilo viria.

— Não estamos sozinhos. — Dorian disse, voz baixa.

E eu soube: o que tínhamos enfrentado era só o começo.

As sombras começaram a recuar, como se algo as tivesse chamado de volta. Então, o uivo longo cortou a floresta.

O som atravessou a pele e entrou na cicatriz, queimando por dentro. As árvores estremeceram, pássaros voaram em desespero, e até a floresta pareceu se curvar. Eu tapei os ouvidos, mas não adiantou: o uivo estava dentro de mim. E a parte mais assustadora era que… eu queria responder.

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