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Capítulo 7 — O Peso do Instinto

(POV Selene)

O chão úmido da clareira grudava nas minhas botas. O vento gelado atravessava minha roupa fina, fazendo a pele arder. As árvores ao redor eram tão altas que pareciam muralhas, e seus galhos entrelaçados abafavam até a luz cinzenta do céu. O som da floresta não era silêncio — era um sussurro constante: o bater de asas escondidas, o estalar de galhos secos, o farfalhar de folhas como se algo nos observasse. Eu pensei na cozinha da minha casa, no cheiro de café queimando, no barulho previsível do portão de ferro. A comparação era cruel. Aqui, nada era previsível. Tudo respirava e parecia pronto para me engolir.

A cicatriz no meu pulso latejou, e por um instante achei que ia brilhar de novo. Respirei fundo, tentando me convencer de que ainda tinha algum controle. Mas, no fundo, eu sabia: estava entrando em um território onde nada mais era meu.

Ronan não perdeu tempo. Arrastou uma caixa de madeira até o centro da clareira e a abriu, revelando bastões, lâminas e facas organizados com precisão quase militar. O cheiro de ferro escapou dali, misturando-se à brisa fria.

— Vamos treinar. — disse ele, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Cada segundo conta.

Meu coração disparou com a simplicidade da frase, mas minha boca se adiantou:

— Vai começar agora? — perguntei, minha voz firme apenas na superfície.

— Agora. — respondeu ele, seco. Pegou dois bastões de madeira e me entregou um. — Pés firmes. Ombros relaxados. Se tensionar, cai.

Segurei o bastão. A madeira era áspera, arranhando a palma da minha mão. Eu quase a soltei, mas fechei os dedos com força, determinada a não mostrar fraqueza. — Espero que tenha almofadas para as mãos também — murmurei, tentando disfarçar o medo com sarcasmo. Ronan me lançou um olhar de pedra, como se humor fosse um luxo que eu não tinha direito. Engoli seco e ajeitei a postura.

Dorian deu um passo à frente, o maxilar travado. — Ela não está pronta.

— Está sim. — Ronan rebateu sem emoção. — Foi marcada. Se não aprender, morre.

O gelo daquelas palavras me percorreu inteira, mas não desisti. Endireitei a postura, segurando o bastão com as duas mãos.

— Então me ensina. — disse, antes que o medo me calasse.

Ronan me observou por um instante, avaliando. Depois atacou.

O impacto do bastão dele contra o meu reverberou nos meus braços e quase me derrubou. Tropecei para trás, arfando. Os golpes vinham rápidos, cada impacto reverberando nos meus braços como choque. A cada batida, a madeira mordia minhas mãos, deixando a pele arder. Eu tropeçava, voltava, tentava manter os pés firmes. Ronan não recuava.

— Abre mais as pernas. — ordenou. — Se não se equilibrar, cai no primeiro vento.

Eu obedeci, arfando, a respiração curta como se tivesse corrido uma maratona em segundos.

— Você pensa demais. — ele disse, a voz grave. — Se pensar, perde.

A raiva subiu. — Não vou acertar de primeira, mas não vou cair fácil.

O canto da boca dele se ergueu num quase sorriso. — Tem fogo. — E avançou de novo, mais rápido.

Os estalos secos ecoaram na clareira. Cada golpe arrancava dor dos meus braços e pernas, mas também algo que eu não conseguia nomear. Aos poucos, percebi que meu corpo reagia antes de eu pensar: o bastão se erguia sozinho, os pés buscavam o chão sem que eu mandasse.

— Respira. — Ronan ordenou. — Sente, antes de reagir.

Fechei os olhos por um instante. O mundo inteiro se abriu em detalhes. O corte do ar quando o bastão dele se movia. O peso do passo esmagando o chão. Até o cheiro da madeira aquecida pelo atrito. Antes que o golpe me atingisse, bloqueei.

O olhar de Ronan brilhou rápido. — Melhor.

Dorian se aproximou, voz carregada de aço. — Ainda não. Ela precisa de controle.

— Controle vem com prática. — Ronan retrucou, firme. — E ela precisa agora.

Dorian deu um passo à frente, quase arrancando o bastão das mãos de Ronan. — Ela não vai aguentar. Vai quebrar antes de aprender. — Ronan não recuou. — O mundo não espera. Ou ela aprende rápido, ou morre rápido. — O silêncio entre os dois pesou como lâmina prestes a cair. Eu senti, pela primeira vez, que não discutiam apenas sobre mim. Discutiam sobre formas de me possuir, de me moldar ao jeito deles.

O ar entre eles pesou. Eu sentia a tensão como uma corda prestes a arrebentar.

Foi quando Caelan surgiu, encostado no tronco de uma árvore, braços cruzados, o sorriso preguiçoso que já me irritava.

— Adoro quando vocês brigam por causa dela — disse, debochado. — É quase romântico.

— E ela se move bem — acrescentou, com aquele sorriso maligno.

— Ainda desajeitada, mas tem algo selvagem no jeito que segura o bastão. Aposto que, se deixar, vira mais fera que vocês dois juntos. Meu sangue ferveu.

— Prefiro ser desajeitada do que ser um idiota como você. — retruquei.

— Ah, estrelinha… — ele riu baixo. — Isso é o que você pensa.

— Some daqui, Caelan. — Dorian rosnou, sem desviar de Ronan.

— Só observando. — ele ergueu as mãos, como inocente. — Mas confesso: a estrelinha tem instinto. Vocês também sentiram.

Meu coração disparou. Eu queria negar, mas cada golpe, cada respiração, provava que ele tinha razão.

O treino continuou até meus braços tremerem, o peito ardendo pelo esforço. O bastão já não parecia apenas madeira. Era parte de mim, como se meu corpo tivesse finalmente encontrado algo que reconhecia.

Quando minhas pernas ameaçaram ceder, Ronan se aproximou e segurou o bastão antes que caísse das minhas mãos.

— Por hoje, chega. — disse, sério. — Amanhã, continua.

Meus braços queimavam, cada músculo latejava como se estivesse em chamas. O bastão escorregava do suor nas minhas mãos, e eu só não desabei porque o orgulho me segurava. A cicatriz no pulso ardia, quente, quase viva, e por um instante jurei ouvir três corações batendo ao meu redor — não apenas o meu. Balancei a cabeça, tentando afastar a ideia, mas ela ficou. Eu estava ouvindo coisas que não devia. Sentindo o que não devia. Devolvi o bastão, ofegante. Dorian estava próximo, me observando com aquele olhar que pesava tanto quanto protegia.

Caelan riu baixo, o som ecoando pela clareira.

— Bem-vinda ao jogo, estrelinha. — murmurou, os olhos brilhando. — Agora o instinto vai cobrar cada passo seu.

A risada dele ficou presa na minha mente. E, mesmo exausta, eu sabia que não havia mais volta.

Eu não entendia quem eu era. Não entendia no que estava me transformando.

Mas o instinto já tinha acordado. E não iria me devolver o controle.

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