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Capítulo 6 — Marcas e Mentiras

(POV Selene)

Deitada no canto do depósito, entre cobertores ásperos e o cheiro de ferro, adormeci. O corpo cedeu não por escolha, mas por exaustão. O sono foi inquieto, nada parecido com descanso. Uivos se misturavam a sussurros. Rostos sem forma surgiam e sumiam, e mãos invisíveis me puxavam em três direções diferentes, como se cada lado quisesse me reivindicar. O calor subia e descia como ondas, depois vinha o frio cortante, arrepiando cada pedaço da minha pele. O cheiro de ferro se misturava com terra molhada, e tudo parecia vivo demais. Eu tentava abrir os olhos, mas era como estar presa dentro da própria cicatriz, cada batida do meu pulso me arrastando mais fundo.

E então, vozes. Baixas, próximas.

— Imagina só quando ela acordar e descobrir que está ligada a três ao mesmo tempo… — Caelan riu, a voz carregada de veneno doce.

— Cala a boca. — Dorian resmungou, irritado. — Ela não pode saber. Não agora.

— A lua deve estar de brincadeira conosco. — Ronan murmurou, seco, cuspindo a sentença. — Três? Nunca vi nada assim.

Silêncio. Só o som de passos se afastando.

Acordei sobressaltada, o coração disparado. O depósito ainda era o mesmo: sombra, madeira úmida, cheiro de ferro. Mas a frase martelava na minha cabeça: ligada a três. Eu não sabia se tinha sonhado ou se realmente ouvira. O medo me corroía. E, por trás dele, uma faísca estranha queimava: uma parte de mim — selvagem, instintiva — já sabia que era verdade.

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A manhã chegou cinzenta, sem aviso. A luz que entrava pelas frestas era fraca, quase morta, mas ainda assim me incomodava. Eu estava dolorida, como se tivesse corrido quilômetros. Cada músculo latejava. A cicatriz no pulso formigava sem parar, pulsando em sincronia com meu coração.

O som de passos firmes me fez erguer a cabeça. Ronan surgiu primeiro, vindo do lado de fora. Estava coberto de poeira, as botas sujas de lama, o casaco escuro marcado por respingos que preferi não saber de quê. Ele parecia não sentir o peso da vigília, como se passar a noite de guarda fosse parte natural de sua respiração.

Seus olhos passaram por mim, avaliando sem pressa. Não disse “bom dia”, nem nada parecido. Apenas largou a lâmina na mesa, limpando-a com um pano áspero. O som do metal raspando no tecido me deu arrepios.

— Dormiu? — perguntou, seco.

— Se isso que tive pode ser chamado de sono… então, sim. — respondi, engolindo em seco.

Ronan ergueu os olhos devagar, o rosto impassível, como quem avalia uma arma nova. Não havia compaixão, mas também não havia desprezo. Apenas constatação fria, que me fez sentir catalogada, como se eu fosse algo a ser medido e usado. Ele fez um som baixo, quase um rosnado de concordância, e voltou a afiar a lâmina.

A porta rangeu de novo e Caelan entrou, o sorriso estampado como se fosse sua marca registrada. Ele se apoiou no batente, o corpo relaxado demais para alguém que parecia viver no meio da guerra.

— Dormiu bem, estrelinha? — provocou, os olhos claros brilhando. — Sonhou comigo?

Revirei os olhos, mas não consegui impedir o calor que subiu ao rosto.

— Eu sonhei que você calava a boca. Foi quase perfeito.

Caelan inclinou a cabeça, o sorriso ainda mais largo. — Isso é porque, no fundo, você gosta da minha voz. O silêncio te deixaria sozinha demais, estrelinha. — Ele gargalhou, alto demais para aquele espaço abafado, como se quisesse irritar Dorian só pelo prazer disso.

E funcionou.

Dorian entrou logo em seguida, trazendo consigo um balde de metal cheio de água fria. Pousou no chão perto de mim e falou sem olhar diretamente:

— Lava o rosto. Precisa parecer viva.

Peguei a água com as mãos trêmulas e deixei cair sobre o rosto. O choque do frio me despertou de um jeito brutal. Os olhos arderam, mas pelo menos espantaram a névoa da noite.

— Eu quero falar com a minha tia — insisti, mais forte do que esperava. — Ela deve estar desesperada.

— Já falei ontem. — Dorian foi cortante. — Não existe mais “tia”. Não existe mais “casa”.

A imagem de Ivy veio à tona, tão nítida que doeu: as mãos ásperas de tanto costurar, ajeitando a manga da minha blusa para esconder a cicatriz; o cheiro de café forte pela manhã; a voz firme que sempre escondia cuidado. Pensar que ela podia estar sozinha… ou pior, em perigo… abriu um buraco no meu peito.

— Você não pode decidir isso por mim! — rebati, a raiva crescendo junto com o medo.

Ele me encarou, firme, como se minhas palavras não fossem mais do que vento.

— Não preciso decidir. O mundo já decidiu. Os caçadores sentiram a marca em você. Se sair daqui, não sobra nem você, nem ela.

As pernas ficaram fracas de novo. Não queria acreditar, mas a voz dele não deixava espaço para dúvidas.

Ronan, ainda limpando a lâmina, falou sem levantar os olhos:

— Você está marcada. E todos sentem quando algo assim acontece.

A palavra me atravessou como navalha. Marcada. Senti a cicatriz pulsar de novo, latejando forte, como se confirmasse a sentença dele. Tentei esfregar o pulso, desesperada, como se pudesse apagar aquilo da pele. Mas o formigamento só piorou, queimando mais fundo. Marcas. Destino. Era como se eu fosse um sinal luminoso no escuro.

Caelan sorriu, inclinando a cabeça.

— Relaxa, estrelinha. Se serve de consolo, você cheira ainda melhor agora.

— Cale-se, Caelan. — Dorian rosnou, o tom grave enchendo o espaço.

O loiro só riu, como sempre. — O que foi? É mentira? Vocês dois sentiram também. Não finjam que não.

Meu estômago se revirou. Não sabia o que aquilo significava, mas a sensação de que havia algo maior acontecendo me deixou ainda mais perdida.

— Chega de conversa. — Dorian cortou, como quem não negocia. — O dia começou. E você vai levantar.

— Levantar pra quê? — questionei, cansada, mas curiosa.

— Hoje você vai aprender o peso da sua própria carne. — respondeu, seco.

A frase me fez engolir em seco. Não sabia se era promessa ou ameaça. Talvez os dois.

Saímos do depósito. O ar frio da manhã bateu no meu rosto como tapa. Pela primeira vez desde a fuga, vi a luz do lado de fora. O espaço aberto me atingiu como soco. O céu cinzento parecia pesar sobre as copas das árvores, que cercavam a clareira como muralhas. O ar frio entrou fundo nos meus pulmões, carregado de cheiros que vinham com violência: terra molhada, musgo, folhas amassadas, até o farfalhar de animais escondidos. Era como se o mundo tivesse ganhado cor e som demais de uma vez, deixando tudo vivo demais para suportar.

Cada detalhe me feria e me fascinava ao mesmo tempo. A cicatriz no pulso latejou, e por um instante achei que ia brilhar de novo.

Eu respirei fundo, tentando me convencer de que ainda podia ter algum controle. Mas, no fundo, sabia: estava entrando num território onde nada mais era meu.

“Você está marcada.” As palavras de Ronan voltaram como navalha.

Olhei para os três à minha frente — Dorian, rígido como aço; Ronan, sombra feita carne; Caelan, sorriso de lobo pronto para brincar com a presa.

E percebi: eu não sabia se estava pronta. Mas eles já tinham decidido por mim.

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