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Capítulo 5 — Sangue e Instinto

(POV Selene)

O depósito cheirava a madeira úmida e ferro quente. A lâmpada amarelada balançava levemente, fazendo as sombras se moverem como se respirassem junto comigo. Eu ainda sentia o pulso formigar, a cicatriz latejando como se tivesse coração próprio — um relógio interno marcando o tempo que eu não entendia.

As palavras deles martelavam sem parar: selo, metamorfa, você sempre esteve lá. Era demais para uma única noite. Eu queria desligar. Eu queria minha tia, minha cama, o mundo pequeno e previsível onde o pior era a conta de luz atrasada.

Afundei de volta na cadeira, as costas pesando contra o encosto frio. Passei as mãos pelo rosto, tentando apagar a cena do cais e o olhar de Dorian me atravessando como sentença. Não adiantou. Abri os olhos com a mesma náusea de antes.

— Eu estou cansada. — A voz saiu áspera, quase um desabafo. — Cansada de correr atrás de perguntas sem respostas. Quero ir pra casa. Minha tia deve estar morrendo de preocupação.

Dorian não reagiu de imediato. Ficou imóvel, como se me medir fosse mais útil do que me responder. Então, finalmente, falou:

— Casa? — ele repetiu, lento, como se testasse a palavra. — Não. Você não tem casa, Selene.

As palavras bateram como pedra. O estômago se contraiu, e eu quase perdi o ar.

— O quê? — minha voz tremeu, mas eu forcei a continuar. — Não é possível. Minha tia… ela não pode ficar sozinha.

Ele deu um passo à frente. A luz da lâmpada desenhou sua mandíbula em sombras duras.

— Você saiu brilhando em uma rua onde ninguém devia brilhar. — cada palavra dele era lâmina. — Eles já sabem. Se você sair, vão te achar. Não para conversar. Para matar. Você. E qualquer um que tenha tentado te proteger.

O calor subiu do peito até a cabeça. Raiva pura. Levantei tão rápido que a cadeira caiu atrás de mim com estrondo.

— Vocês não vão me impedir! — marchei até a porta, cada passo um desafio. — Eu vou pra casa, vou ver a Ivy, e vocês não podem me prender aqui.

A maçaneta fria queimava na palma da mão. O ar da noite parecia chamar, doce e traiçoeiro, como promessa de liberdade. Parte de mim gritava corre, volta para o que conhece. Mas outra parte lembrava do corpo da mulher no cais, da lua talhada na carne e da cicatriz brilhando no meu braço.

Foi nesse instante que o uivo cortou a noite. Longo. Perto demais.

O som atravessou as paredes, atravessou meus ossos. Minhas pernas se moveram sozinhas: soltei a maçaneta e bati a porta de volta. O eco soou como sentença.

Dorian me observava. Nem vitória nem pena. Só aquele olhar que me despia até o osso.

— Ou você me leva até a cidade — arrisquei, a voz fina de quem tenta negociar —, ou pelo menos me deixa mandar um recado pra Ivy. Não vou aceitar ficar aqui como prisioneira.

Ele não respondeu. Apenas virou o rosto devagar em direção a Ronan.

O gigante se descolou da parede. O movimento dele tinha peso de rocha, mas era silencioso. A lâmina surgiu em sua mão com naturalidade assustadora. Não parecia uma arma. Parecia parte do corpo dele. A luz da lâmpada correu pelo fio, fria, letal.

Meu coração quase saiu pela boca.

— Vai fazer o perímetro. — Dorian ordenou, sem elevar a voz. — Se houver movimento, você resolve.

Ronan girou a lâmina entre os dedos, como quem testa o equilíbrio de um brinquedo. Um meio sorriso cruzou seus lábios.

— Quem vier… volta em pedaços. — disse, antes de desaparecer na noite.

Um arrepio me tomou inteira. Olhei de volta para Dorian, sem conseguir conter a raiva.

— Vocês são sádicos. — cuspi. — Sádicos com pose de heróis baratos.

A gargalhada de Caelan explodiu pelo depósito. Limpa, insolente. Ele se encostou nas caixas, braços cruzados, sorriso preguiçoso nos lábios.

— Não, estrelinha. — disse, com aquela voz que escorria perigo. — Somos seus salvadores. Príncipes, talvez… mas sem cavalo, sem flores, e com dentes mais afiados. Mais feras que homens.

Revirei os olhos, mas um riso curto escapou de mim sem permissão. Um sorriso pequeno, tolo, que me irritou na mesma hora. Só que Caelan travou. Os olhos dele ficaram presos em mim, sérios demais por um segundo. O sorriso dele se apagou como se eu tivesse tocado um nervo escondido.

Dorian avançou, quebrando o momento. A mão dele segurou meu braço com firmeza, não violência. Direcionamento.

— Escuta, Selene. — a voz dele tinha aço. — Eles não estão brincando. Caçam você porque sabem que algo mudou no seu sangue. Se você sair, leva a sua tia junto para a morte.

Meu coração afundou. O nome de Ivy na boca dele soou como ameaça e condenação ao mesmo tempo.

— Mas eu não quero viver trancada. — minha voz falhou. — Eu só quero minha tia.

O olhar de Dorian me cortou no meio da frase. Ele não precisou gritar.

— Se você sair, você e sua tia estão mortas. — disse, sem hesitar. — Não falo de hipótese. Falo de certeza.

— Você não é uma humana com reflexos apurados. — completou, cada palavra pesada. — Você é uma metamorfa. E alguém escondeu isso de você por um motivo.

As lembranças me atingiram em cascata: Ivy puxando minha manga na escola, mudando de assunto quando eu perguntava sobre meus pais, me pedindo para não mostrar a cicatriz. Não era zelo. Era segredo.

— Nós fomos enviados para protegê-la. — concluiu Dorian, duro. — Não para negociar. Você vai se deitar. Amanhã começa o treino real.

As pernas fraquejaram. O grito morreu na garganta.

Caelan se aproximou sem pressa, parando perto demais, o calor dele me envolvendo. Mas o tom que usou foi quase gentil:

— Você vai dormir, estrelinha. Não porque está presa. Mas porque estar viva tem que valer mais que seu orgulho.

Fechei os olhos um instante. A imagem de Ivy sozinha em casa me queimou o estômago.

— E se eu recusar? — perguntei, sabendo a resposta.

Dorian suspirou, mas não desviou.

— Então tentaremos trazer você de volta de qualquer jeito. Mas não vou mentir: as chances são menores.

O silêncio caiu pesado. Foi quebrado pelo ranger da porta. Ronan retornava, o capuz molhado, a lâmina limpa e guardada. Ele se posicionou diante da entrada como muralha. Outro uivo ecoou, mais distante. Um aviso de que lá fora ainda me esperavam.

— Vai descansar. — disse ele, seco. — Amanhã você aprende a não temer o seu próprio sangue.

Era cru, mas havia promessa escondida ali: não te deixamos morrer.

Olhei para Dorian e, pela primeira vez, enxerguei algo além da disciplina militar. Havia cuidado no olhar dele. Duro, contido, mas real.

— Tá bem. — murmurei, derrotada. — Mas se tentarem me trancar, eu fujo.

Um riso baixo percorreu os três. Não de zombaria — mas como se estivessem diante de uma criança teimosa que já sabiam não soltar.

— Já que é assim… — Caelan sorriu torto. — Dorme, camponesa. Amanhã o trabalho sujo começa.

Dorian me conduziu até um canto onde havia cobertores velhos. O toque dele foi prático, firme. Deitei. A madeira dura gemeu sob meu corpo. Fechei os olhos, não porque quis, mas porque precisava.

Antes do sono me engolir, ouvi Caelan dizer, como provocação e cuidado disfarçados:

— Sonhe com algo que não te dê medo.

Sorri de leve, amarga. O uivo soou outra vez na noite, mais distante.

E entendi: não havia escolha. Só sobrevivência. E sobreviver, ao lado deles, talvez não fosse escolha… mas condenação e salvação ao mesmo tempo.

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