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Capítulo 4 — Sussurros e Garras

(POV Selene)

Ainda sinto ecoando na cabeça a risada que morreu na minha garganta no depósito.

“Metamorfa”, “selo”, “Ivy sabia”… as palavras deles se repetem como lâmina sem fio, cortando devagar. Não faz sentido. Não pode fazer. Minha tia, a mesma que costurava minhas blusas para esconder essa cicatriz, teria escondido algo assim?

O silêncio aqui dentro não ajuda. É grosso demais, parece que cada sombra cochicha o que eu tento negar.

O uivo atravessa as paredes como faca no escuro.

Não é barulho. É presença. Vibra no osso, arranha a pele, toma espaço dentro de mim como se tivesse sido feito só para me encontrar.

Pulo da cadeira antes de perceber. O coração dispara, e sinto a cicatriz queimar debaixo da faixa.

— O que foi isso? — minha voz sai mais aguda do que eu queria.

— Eles. — Dorian responde sem piscar, ainda de pé diante da mesa. — Estão chegando perto.

— “Eles”? — repito, mais para ganhar tempo do que para entender. — Lobos selvagens? Vou ser dilacerada? Porque se for esse o plano, eu preferia um final menos cinematográfico.

— Não selvagens. — ele me corrige, seco. — Caçadores. O uivo é aviso. Significa que já farejaram você. As mãos ficam geladas, suor escorre pela nuca, e minha boca seca tanto que engolir vira tarefa impossível.

“Ótimo, Selene, você virou delivery noturno de lobos famintos.”

Aperto os dedos na cadeira, tentando rir da minha própria tragédia, mas o som morre antes de sair.

Meus lábios ficam secos.

— Ótimo. Sou tipo um letreiro luminoso para monstros.

Dorian me encara de lado, e a sombra dele parece crescer.

— Não letreiro. — corrige. — Chamariz.

O sangue gela.

Abro a boca para retrucar, mas a voz não vem. Então uso a única arma que me resta: sarcasmo.

— Maravilha. Eu sempre quis ser um outdoor ambulante.

Um som baixo me puxa o olhar: Caelan encostado no batente, braços cruzados, o sorriso preguiçoso de quem gosta de assistir à confusão.

— Fecha os olhos. — diz, leve, mas não soa como convite. — Deixa o silêncio te envolver.

— O quê? — franzo a testa. — Agora vai virar aula de yoga?

— Teste. — Ele ergue uma sobrancelha. — Ou você tem medo do escuro?

Reviro os olhos.

— Tá, ótimo. Fecho os olhos. E aí?

Ele gesticula, divertido, e eu obedeço — mais para provar que não tenho medo do que por confiança.

Engulo seco. Parte de mim quer recusar, porque se eu fechar os olhos posso abrir e descobrir que todos sumiram, que era só pesadelo. Mas Caelan me olha como quem aposta que eu não consigo. Não vou dar esse gosto. O escuro me engole.

— O que ouve? — é Ronan quem pergunta, a voz baixa, firme, sem tom de brincadeira.

A princípio só o som do meu próprio coração. Forte demais.

Depois…

— Um corvo. — sussurro, surpresa. — Está pousado em algum lugar perto da entrada. Consigo ouvir o bater das asas, o grasnar rouco… quase como um rangido metálico. Além do corvo… — hesito. — Tem um rato correndo entre as caixas. Consigo ouvir o roçar das patas pequenas no pó.

Pauso. — E… o arranhar de unha. — Me viro um pouco, consciente demais. — Ronan, isso é você?

Ele não responde, mas a rigidez no maxilar entrega que acertei.

— E cada vez que vocês respiram, o ar se mexe de um jeito diferente.

Quando abro os olhos, Ronan me observa como se tivesse recebido a resposta certa em um enigma.

— O que mais? — Dorian insiste.

— A madeira. — digo, quase sem pensar. — Rangendo com o vento. Água pingando em algum lugar. Até… até o ar mudando quando vocês se mexem.

A sala fica em silêncio, só minha respiração cortando. Eu engulo seco.

— E o que sente? — Dorian pressiona, sem piscar.

Meus pulmões enchem de ar, e aí percebo: há cheiros. Distintos. Claros. Como se fossem assinaturas invisíveis que eu nunca tinha notado.

Primeiro, o cheiro pesado, denso, que me acerta como soco: terra molhada depois da chuva misturada com pólvora antiga. É áspero, como se fosse feito pra dominar o espaço.

O segundo é quente demais, quase doce, mas com uma ponta de fumaça que arranha o nariz. É cheiro de perigo disfarçado de convite.

E o terceiro… frio. Cortante. Como vento de inverno entrando por uma janela aberta, carregando ferro gelado e algo que lembra neve.

— Ferro queimado… couro molhado… fumaça— Terra úmida… pólvora. Mais pesado. E por último, involuntariamente, meus olhos caem em Dorian.

— Vento frio. Como inverno entrando por uma janela aberta.

As palavras escapam antes que eu perceba. Meu rosto esquenta.

Eles me encaram, e eu me sinto exposta como nunca.

Caelan sorri, quase em segredo.

— Engraçado. — diz baixo, e os olhos claros brilham com malícia. — Eu sinto rosas.

Minhas bochechas queimam. Não sei se é deboche ou provocação. Minha mente corre para algo sujo, como se ele tivesse transformado o teste em piada pessoal. Rio alto, nervosa.

— Sério? Rosas? Que conveniente. Próximo passo é você recitar poesia?

Não sei por que o ar some da sala. Só sei que sinto a cicatriz latejar como se tivesse entendido a indireta.

Balanço a cabeça, rindo nervosa.

— Pronto, virei uma super humana com audição e olfato de lobo. Mas metamorf— — engasgo com a palavra. — Metamorfa? Não. Isso não.

Meu sarcasmo é minha muralha. Mas os três riem. Eles riem. Não é humor. É um som baixo, cortante, quase cruel. Como se a piada fosse eu.

Sinto o arrepio subir pela espinha, não porque acho engraçado, mas porque percebo: estão rindo juntos. Unidos. E eu, de fora. Sempre de fora.

— O que foi? — exijo, cruzando os braços.

Ronan responde primeiro, seco:

— Ninguém é gênio a ponto de ouvir corvo, vento e coração ao mesmo tempo.

Dorian completa, firme, cada palavra um peso:

— Ninguém sente cheiros como você descreveu se não estiver desperto.

— Vocês estão exagerando. — tento negar, mas minha própria voz treme.

E é aí que Dorian se aproxima, lento, a sombra dele se projetando sobre mim.

Os olhos cinzentos me prendem.

— Você sempre esteve lá, Selene. Sempre no lugar errado, na hora errada. — Ele inclina a cabeça, sem tirar os olhos dos meus. — Ou estou mentindo?

Tento abrir a boca para retrucar, para gritar que é mentira, que sou normal. Mas a língua pesa. O peito aperta. Nenhuma palavra sai. Só o silêncio, que se arrasta pesado demais.

O uivo ecoa de novo, mais longe desta vez.

Mas não me consola.

Porque dentro de mim já há outro som — um ritmo novo, perigoso, que não consigo mais calar.

Se eles estão certos… se isso sempre esteve em mim… então quem diabos eu sou?

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