(POV Selene)
O ar no depósito muda. Não sei explicar como, mas sinto. É como se algo invisível tivesse cruzado a porta, pesado e perigoso.
Dorian se afasta da mesa devagar, o corpo inteiro em alerta. Não é um movimento brusco, mas calculado, como um animal prestes a atacar.
— Fica aqui. — Ele não me olha, mas a voz é um comando que não aceita discussão.
Meu instinto quer obedecer. Mas algo dentro de mim — aquela parte que acordou quando a cicatriz brilhou — quer correr para perto dele.
— O que está acontecendo? — Minha voz sai baixa demais, quase um sussurro.
— Eles estão perto demais — ele responde, os olhos fixos na porta como se pudesse ver através do metal. — Vieram atrás de você.
Atrás de mim. A frase pesa como chumbo.
Antes que eu possa reagir, o barulho de passos ecoa pelo corredor. Pesados. Determinados. Um som que arrepia minha pele e faz meu coração disparar.
Dorian se posiciona à frente da porta, e, em um gesto quase imperceptível, acena para alguém no canto da sala. Ronan surge das sombras, com uma arma que não parece humana nas mãos, o olhar duro como pedra.
— Três deles — Ronan informa, a voz baixa e afiada. — Dois caçadores e um que eu não consegui identificar.
— Não importa quem seja. — Dorian flexiona os ombros, como se estivesse se preparando para a guerra. — Eles não vão levá-la.
A frase me atinge como um soco. Não vão levá-la. Como se eu fosse um objeto. Uma coisa a ser protegida ou... reclamada.
A raiva se mistura ao medo, e eu finalmente encontro minha voz:
— Eu não sou um pacote que vocês precisam guardar!
Dorian finalmente olha para mim. É um olhar frio, duro, mas por trás dele há algo que queima.
— Não, Selene. — Ele dá um passo em minha direção, devagar, como se temesse que eu recuasse. — Você é muito mais do que isso. E é por isso que eles vão matar para ter você.
Minha boca seca. Qualquer resposta morre antes de sair.
O primeiro impacto atinge a porta, um estrondo que faz o chão vibrar. Eu pulo da cadeira, instintivamente, e Ronan me lança um olhar rápido.
— Fica atrás de mim. — A voz dele é áspera, mas não há ódio nela. Só algo parecido com... dever.
— Não encosta nela — Dorian rosna, o tom grave o suficiente para fazer a sala inteira silenciar por um segundo.
Outro impacto. O metal da porta geme, prestes a ceder.
E então, Caelan aparece, encostado no batente da porta interna, com aquele sorriso preguiçoso que me irrita.
— Sempre a diplomacia primeiro, não é, Dorian? — Ele ergue uma sobrancelha, como se estivesse se divertindo. — Quer que eu cuide disso?
— Não toque nela. — A voz de Dorian é uma lâmina.
— Quem disse que eu ia tocar? — Caelan ri, mas seus olhos, frios e analíticos, não saem de mim. — Só estou curioso para ver do que ela é capaz.
Outro estrondo. A porta principal cede um pouco. Eu sinto meu coração explodir dentro do peito.
— O que eles querem comigo? — Minha voz treme, mas sai.
Dorian finalmente se vira para mim. Ele fecha a distância entre nós em três passos, tão rápido que mal tenho tempo de respirar. O calor do corpo dele me envolve antes mesmo de ele falar.
— Querem o que é deles por direito. — Ele segura meu pulso, o mesmo que ainda pulsa com a cicatriz brilhando sob a pele. — Mas você não pertence a eles.
A sala parece encolher. A voz dele é um sussurro que vibra nos meus ossos.
— Pertence a quem, então? — Não sei se a pergunta é minha ou se meu corpo a fez por mim.
Os olhos dele escurecem, e, por um segundo, penso que ele vai dizer a verdade. Mas um terceiro estrondo derruba a porta antes que ele possa falar.
Homens armados entram, dois deles com a frieza calculada de quem já matou antes. O terceiro... não é humano. Os olhos dele brilham com uma luz amarela, e um sorriso largo revela dentes afiados demais.
O caos começa.
Ronan dispara primeiro, um tiro seco que ricocheteia no metal. Caelan some das sombras e reaparece atrás de um dos caçadores, como um fantasma letal. Dorian me empurra para trás, o corpo dele virando uma barreira entre mim e a violência.
E é aí que acontece.
A mesma onda quente que senti no beco volta, mais forte, mais brutal. Meu corpo inteiro queima, como se a pele estivesse tentando rasgar por dentro. O uivo que ecoa lá fora agora está dentro de mim, rasgando minha garganta em silêncio.
Dorian percebe. Eu vejo no olhar dele quando se vira para mim, no meio do caos. Ele sabe.
— Respira, Selene. — Ele se aproxima, o mundo inteiro desmoronando ao redor. — Deixa vir.
Eu não sei como. Não sei o que ele quer dizer. Mas, quando fecho os olhos, sinto.
Sinto o cheiro de sangue, de pólvora, de medo. Sinto cada batida de coração naquele lugar. E sinto o meu... mais forte, mais rápido, mais vivo do que nunca.
Quando abro os olhos, o mundo é outro.
E Dorian está lá, perto demais, os olhos escuros como a noite.
— Isso — ele sussurra, quase orgulhoso. — Acordou.
E, no fundo da sala, um dos caçadores cai, com um rugido que não é humano.
Eu tremo. Não de medo. Mas de algo que não tenho coragem de nomear.