Celina desperta aos poucos, mas o despertar é mais parecido com um afogamento. É como se sua mente lutasse para emergir de um mar profundo e viscoso, onde pensamentos se movem devagar demais e a consciência arde como sal em ferida aberta.
O primeiro sinal de que está viva... é a dor.
Ela se instala primeiro na nuca e nas têmporas — uma dor aguda e insistente que pulsa em sincronia com as batidas frenéticas de seu coração. Então ela nota o ardor em seu rosto. A bochecha pulsa sob a pele sensível, o local exato onde recebera um tapa há alguns minutos? Horas? Celina não faz a mínima ideia de quanto tempo havia se passado desde que perderá a consciência.
O segundo sinal, é o pânico.
O tecido que cobre sua cabeça é grosso, abafado, com cheiro acre de suor velho e mofo. A sacola parece ter sido feita para sufocar. O ar entra com dificuldade por entre os fios mal costurados, e a cada respiração, o calor úmido a envolve como um pano encharcado.
Ela tenta mover as mãos, mas não consegue.
Braçadeiras de plástico apertam seus pulsos à frente do corpo. Justas demais. Cortam a pele, mordem a carne, entorpecem os dedos. Celina está franca demais, como há muito tempo não se sentia, e a cada tentativa de se soltar apenas espalha mais dor.
Um cinto de segurança atravessa seu peito, forçando-a contra o encosto de um banco que ela não reconhece. A cada solavanco do veículo, o aperto aumenta. Pressiona seu diafragma. Roubando-lhe o ar aos poucos.
Um carro.
Seu coração b**e mais forte. Seu cérebro costura os eventos com brutalidade.
Invasão.
Sequestro.
Líder da equipe investigativa.
Maurício.
Seu único porta retrato com seus pais destruído.
Uma raiva quente toma seu estômago. Ela morde com força a parte interna da bochecha. O gosto metálico do sangue preenche sua boca, mas a dor física ajuda. A mantém alerta. Consciente. Presente.
Mantenha a calma, mantenha a calma — repete como um mantra em sua mente, forçando sua respiração a se manter ritmada e sua pulsação sobre controle, a mente fria.
Ela escuta o som do motor vibrando sob o assoalho. Curvas. A mudança de asfalto. Um trecho de estrada irregular. Provavelmente saíram da cidade.
As vozes masculinas se tornam mais nítidas. Rudes. Sarcásticas.
— Conseguiu pensar em uma desculpa? — uma voz zombeteira pergunta. — Eu não tenho coragem de contar que uma putinha quebrou meu joelho com um chute, porra.
— E o meu ombro? — Rebate outro, com raiva disfarçada de humor. — A vadia nem pareceu sentir dor. Parecia tá possuída por alguma entidade.
— Ou um demônio — o primeiro volta a falar.
— Vocês ainda estão falando disso? — Uma terceira voz se junta, mas calma. — Superem.
— Iiih, como tá seu narizinho de princesa? — A primeira voz zomba.
— Idiota!
— Aí, pra que a violência?
— Já sei! — A segunda voz volta a falar. — Vamos dizer que tinha um tiroteio no bairro. A gente finge que foi pego no fogo cruzado. Enfaixa os machucados e pronto. Todo mundo acredita.
Celina bufa, não se controlando.
— Que desculpinha mequetrefe — zomba, revirando os olhos por baixo do pano, se arrependendo logo em seguida.
E se eles resolvessem a matar?
Ela não podia morrer, não antes de vingar sua mãe.
Silêncio.
Celina trava a respiração, a ansiedade a dominando.
De repente, o carro para.
Chegaram no destino? Ou resolveram matá-la e largo o corpo na estrada?
O som da porta ao seu lado esquerdo chega em seus ouvidos, ela vira o rosto da direção por reflexo. A mão grande apeta seu braço e a arrasta para fora do carro.
— Olha só quem acordou — ela reconhece o som da primeira voz, soando perto demais de seu rosto. — A loirinha durona ainda tem fôlego pra ser engraçadinha.
— Vamos botar a coleira nela que essa atitude muda rapidinho, igual ao das outras ariscas que chegaram aqui.
Coleira?
O estômago de Celina se contorce.
Quantas “outras ariscas” já houve?
Ela não quer saber a exatidão.
Ela tenta se acalmar, pensar racionalmente, mapear qualquer movimento que possa fazer. Mas a angústia é como uma serpente apertando o peito, dificultando cada respiração.
A lona sob seu rosto começa a aquecer com o vapor da própria respiração. Está tonta.
Paciência, Celina. — Grita mentalmente. — Preciso recuperar minhas forças. Eu vou sair viva desse lugar. Vou prender todos esses filhos da puta.
— Leve a mercadoria para o doutor verificar, se ela ainda for virgem, vamos ter um lucro maior.
Celina trinca o maxilar. É claro que iriam checar isso. Sabia como funcionava o tráfico de mulheres — e como a virgindade era tratada como um “prêmio raro” — uma perversidade lucrativa para quem vendia corpos e um tormento a mais para quem os habitava.
Aquilo não a surpreendia. Mas a revolta... a revolta queimava.
— É, essa puta vai compensar esses machucados. Depois que comprarem a primeira noite dela, vou fazer questão de foder com você, loirinha — a primeira voz volta a falar, o rosto perto do dela.
Maldito — Celina cerra as mãos presas, o nojo percorrendo todo o seu ser.
Sem hesitar, ela impulsiona a cabeça para trás e acerta o homem com todo o seu resto de força, arrancando sangue do nariz dele.
— Sua...
— Ei — o dono da terceira voz intervém, segurando a mão erguida do colega. — Temos que entrar. Vamos logo, quanto mais rápido ela for examinada melhor.
— É loirinha, sua contagem regressiva começou.