Péssima ideia.
Ela sai da cama num pulo, segurando o lençol como uma armadura improvisada. Corre até o criado-mudo, agarra um copo vazio e o ergue como se fosse uma arma. —NÃO ENCOSTA EM MIM! EU JURO POR DEUS QUE... QUE... EU JOGO ESSE COPO NA SUA CARA! Engulo em seco. Perfeito. Como se meu rosto precisasse de mais alguma coisa. Levanto as mãos, a voz saindo tão tensa quanto meu corpo. —Calma... calma... eu não vou te fazer mal. Eu sou... eu sou o filho do Lúcio. Ela pisca. Uma. Duas vezes. O peito arfando, as bochechas coradas, o olhar oscilando entre choque, pavor e... algo que não consigo decifrar. E então, a voz dela sai, mais baixa, mais hesitante.—Filho de Lúcio? Eu....sei quem... quem você é...
E aí... aí meu coração simplesmente para. Uma linha fria percorre minha espinha. Minhas pernas enfraquecem. O que era um pesadelo teimoso, agora se materializa.
Fecho os olhos. Quando abro, esperando que tudo tenha sumido... —MEU DEUS! SANTINO! A voz que invade o quarto é como uma martelada. Me viro tão rápido que quase perco o equilíbrio. Lola. E, naquele instante, me sinto... nu. Totalmente exposto. A luz forte escorrendo pelo quarto, banhando meu rosto. Cada pedaço da cicatriz, cada marca, cada queimadura no meu pescoço parece pulsar. Aquela cicatriz, que há muito aprendi a carregar com dignidade forçada, agora queima. Ardente. Intensa. Dolorida. É como se ela gritasse mais alto do que qualquer palavra. Eu me sinto deslocado. Transtornado. Fazia tempo... muito tempo... que a maldita cicatriz e as queimaduras não me incomodavam tanto quanto nesse exato momento. E, claro, logo agora. Logo... diante dela. —Tia Lola... — Tento sorrir, e soa mais como um espasmo nervoso do que um gesto. Caminho até ela, abrindo os braços, e, sim, minha perna manca, denunciando que nem meu corpo mais consegue fingir normalidade. Ela me abraça apertado. Aperta como quem tenta colar os pedaços quebrados que ela sente em mim. Beija meu pescoço, fungando, e eu... eu fecho os olhos. Quase me permito esquecer que tem alguém atrás dela que, neste momento, me olha como quem vê um fantasma. Quando a encaro, as lágrimas que teimaram em se formar não conseguem ser seguradas. Elas estão ali, queimando nos meus olhos. —Meu querido... pensei que viesse... amanhã cedo... — Sua voz falha, trêmula. —Mas é cedo, tia... — Tento soar leve, mas sai rouco, áspero. — E olha... foi uma luta conseguir um voo. Todos lotados. Ela sorri. Ainda emocionada. Ainda segurando as lágrimas. —Mas... não tão cedo assim... Bem... — Ela respira fundo, olha para trás, e seu olhar encontra exatamente quem eu temia. — Mas que bom que você já está aqui. E aí... é isso. A hora da verdade. Meus olhos seguem o dela... e pousam nela. E meu peito aperta. Ela se lembra de mim. E eu não faço ideia se isso... é minha salvação. Ou minha sentença final.Marina Baker
Eu encaro Santino Berluccine.
Agora que as luzes do quarto foram acesas, eu podia ver todos os detalhes do seu rosto. E, meu Deus... que rosto. Seus olhos eram negros. Negros, intensos, impenetráveis. Como se escondessem segredos suficientes para preencher dez enciclopédias e mais algumas tragédias gregas. Havia uma sombra neles... algo pesado, denso, como quem aprendeu a sobreviver no meio de uma guerra que ninguém mais viu. A cicatriz, funda, marcada, cruel, descia de sua têmpora até seu queixo, riscando seu rosto como se a própria vida tivesse decidido deixá-lo tatuado de lembranças. E as queimaduras... se estendiam pelo pescoço, manchando sua pele, lembrando que nem todos saem ilesos do fogo — seja ele literal, seja ele emocional. E então, aquela pergunta inevitável se forma dentro de mim, latejando, insistente: Foi o mesmo acidente que nos vitimou? Porque eu não lembro. Simplesmente... não lembro. Tudo que sei é o que me contaram. Tivemos um acidente de carro. Nesse dia, ele estava me levando até um estúdio, onde eu faria meu primeiro teste para entrar na carreira de modelo. Eu estava cheia de sonhos, de planos, de ansiedade pulsando nas veias. E, depois... o vazio. Só o depois. O hospital. A dor. As cicatrizes invisíveis. Logo que ele se recuperou, ele simplesmente... desapareceu. Viajou para a África. Foi embora. Sumiu. Evaporou. E eu nunca mais o tinha visto. Nunca mais. O que só torna essa situação completamente absurda. Porque agora ele está aqui. No meu quarto. No meio da madrugada. Olhando para mim como se eu fosse um problema que ele não pediu, não quer e não sabe como resolver.