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A Fera que Me Amou
Por: Sandra Rummer
O QUARTO, A CONFUSÃO E... ELA.

Santino Berluccine

Eu ergo o rosto e, por alguns segundos, só consigo ficar ali, parado, encarando aquela fachada tão conhecida e, ao mesmo tempo, tão estranha agora. O grande casarão do meu pai. Aquele lugar carrega cada cicatriz do meu passado, e vê-lo assim, com a pintura desbotada, as janelas empoeiradas e o jardim... ah, o jardim...

As plantas, que antes desenhavam caminhos perfeitos, agora se rebelaram, cresceram sem controle, tomaram conta de tudo. Eram como mãos estendidas, lembrando que o tempo passou, que o abandono cobra seu preço... assim como a vida cobrou de mim.

Sinto o coração bater pesado, irregular, como se cada pulsação fosse uma martelada no peito. Já fazia um ano desde minha última visita, mas agora, parado aqui, parece que foram décadas.

O passado... aquele maldito passado que eu passei anos tentando sufocar, esquecer, recalcular... está agora me olhando de volta. Me esperando. Me desafiando. A lembrança do dia do acidente se infiltra sorrateira, como uma faca que cutuca devagar, só para ter certeza de que a ferida continua aberta.

—Senhor... — a voz do motorista chega hesitante, quase desconfortável, e é impossível não perceber o esforço que ele faz para não olhar diretamente para mim. — Tem certeza que... que é aqui? O senhor... ficou um bocado de tempo... só olhando...

Por alguns segundos, perdi até a habilidade de falar. Minha garganta secou. Travei.

—Sim... é esse. — respondo, recuperando algum traço de dignidade, mesmo que minha voz soe mais rouca do que deveria. Mexo na carteira, tiro algumas cédulas e estendo para ele. — Fique com o troco.

O homem pega o dinheiro, abaixa o olhar, nem ousa me encarar. Parte de mim até entende. Outra parte... bem, essa queria perguntar se ele acha que cicatrizes são contagiosas.

Ao redor, percebo olhares disfarçados, curiosos, desconfortáveis. Alguns desviam rapidamente, outros me observam como quem observa uma aberração, um espetáculo grotesco que não se quer, mas não se consegue ignorar.

Aquela velha sensação de ser invisível... e, ao mesmo tempo, mais visível do que nunca.

O motorista tira minhas duas malas do porta-malas e as deixa no chão, faz um aceno quase automático e desaparece como se o próprio diabo estivesse prestes a saltar daquela porta.

Fico sozinho. Só eu, minhas malas... e aquele casarão que carrega mais fantasmas do que paredes.

Bato na porta com força, como se, de alguma maneira, esse gesto pudesse espantar o desconforto, os pensamentos, o pavor irracional que cresce no peito. Nenhuma resposta. Nenhum som. Já são mais de três da manhã. Lola, claro, deve estar dormindo.

Respiro fundo, estico o braço e, quase no automático, passo a mão no buraco acima da porta. Se a chave reserva ainda estiver ali, pelo menos uma coisa nesse mundo permaneceu intacta.

—Bingo. — murmuro, segurando aquele pequeno pedaço de metal como se fosse uma relíquia.

Encaixo a chave na fechadura e torço. Por favor, que não tenha nenhuma tranca extra...

Clac.

A porta se abre.

Entro. Não me dou nem ao trabalho de acender as luzes. Que diferença faria? Estou exausto, e a claridade só serviria para me lembrar do que evito olhar... de mim mesmo.

A pouca luz que invade a casa vem dos grandes janelões, projetando sombras fantasmagóricas pelas paredes. Tudo está exatamente igual... e, ao mesmo tempo, completamente diferente.

Caminho em direção às escadas, sentindo uma exaustão que não é só física. É um peso na alma, uma âncora que arrasto junto com meu próprio corpo. Cada degrau parece exigir mais de mim do que deveria.

No corredor, sigo até meu antigo quarto. Não faço barulho. Não quero acordar Lola... muito menos a enfermeira que cuida de meu pai.

Giro a maçaneta.

O breu me engole. Mais escuro do que eu lembrava.

Tateio a parede, procurando o interruptor, como se meus dedos pudessem encontrar algum caminho para a luz.

—Merda... — resmungo, quando percebo que ou moveram o maldito interruptor, ou minha memória resolveu me sabotar também.

Desisto. Caminho no escuro, chutando os sapatos pelo caminho, arrancando a jaqueta e jogando-a no chão. Meus ombros doem, a tensão me rasga por dentro. Desafio o cinto da calça e caminho até sentir o tapete macio sob meus pés.

Dou mais um passo...

—Aaaaah! — Um gemido rouco escapa quando meu pé encontra algo duro, pontudo, que me faz ver estrelas.

—Mas que... MERDA! — grito, levando o pé para trás.

Piso de novo, agora mais cauteloso, e percebo... são sapatos. De salto. Salto alto.

Franzo o cenho. Minha mente faz uma conexão imediata que eu não queria fazer.

E, como se o universo decidisse que eu não estava suficientemente ferrado, um som me congela.

Movimento. Na cama.

Tem alguém... na cama.

O coração dispara, como um tambor dentro do peito. O sangue corre rápido, frio e quente ao mesmo tempo. O estômago se revira.

Estendo a mão, encontro o criado-mudo, deslizo os dedos até o interruptor do abajur. Acendo.

E então, eu vejo.

E o mundo simplesmente... para.

Ali, bem no meio da cama, dormindo como uma deusa nórdica largada no Olimpo errado, está ela.

Cabelos loiros, longos, despenteados de um jeito indecentemente sedutor. Espalhados como ouro pelo travesseiro. O lençol envolve seu corpo, mas deixa claro cada curva, cada contorno.

Meu corpo inteiro fica rígido. Não. Não. NÃO.

Não desse jeito. Não agora. Não assim!

—Cazzo... Non in questo modo... — murmuro, e sinto o italiano me escapando, como sempre acontece quando a mente simplesmente não consegue processar.

Meu coração dispara, o estômago fecha, a boca seca. Fico imóvel, paralisado, feito uma estátua rachada.

Ela se mexe. Se espreguiça lentamente, como uma gata preguiçosa e inconsciente do perigo.

Vira o rosto.

E quando os olhos verdes dela encontram os meus...

O tempo congela.

Ela pisca, franzindo o cenho, incomodada pela luz... até que, de repente, o entendimento despenca sobre ela como um raio.

Ela se senta de um salto, apertando o lençol contra o peito nu, e seus olhos se arregalam tanto que, se fosse possível, saltariam do rosto.

—AAAAAAAAAAHHHHH! — O grito é tão estridente que parece vibrar nos ossos.

Levo as mãos para cima, num gesto automático. —Calma, calma, calma!

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