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CAPÍTULO 5 - Ficha limpa, alma suja

O ventilador girava devagar no teto do quartinho. As pás faziam um barulho irritante, um rangido abafado que se repetia como um aviso, como um lembrete de que nada ali era exatamente confortável.

Mas Theo nem ouvia.

Sentado no chão, de pernas cruzadas, ele encarava a pasta preta entre as mãos. A mesma que vinha ignorando desde o primeiro dia no morro. Não por esquecimento, mas porque... abrir aquilo significava encarar a verdade. E a verdade estava ficando cada vez mais difícil de digerir.

A luz fraca do abajur iluminava o brasão da Polícia Civil estampado na capa. Ele passou o dedo sobre o símbolo como se isso fosse clarear suas ideias. Respirou fundo.

Digitou a senha no cadeado digital. A luz verde acendeu. Clique.

Abriu.

Ali estava ela.

ISABELA SOUZA DOS SANTOS

Vulgo: ISIS

Idade: 32 anos

Naturalidade: Salvador (BA)

Residência: Complexo Santa Fé

Ocupação: Liderança local de facção – C.V.M. (Comando Voz do Morro)

Perfil: Carismática, estratégica, sem passagens. Possui imagem pública de liderança comunitária. Nunca foi presa. Atua sob fachada de projetos sociais. Altamente influente.

Periculosidade: ALTA

Registro fotográfico: Anexado

Ele pegou a foto.

Era ela. Mais jovem, cabelo preso num coque improvisado, pouca maquiagem, mas o mesmo olhar. Um misto de altivez e desafio. Um sorriso torto no canto da boca. Do tipo que não pede licença. Do tipo que entra.

Theo passou os dedos sobre a imagem, como se tentasse decifrar um mapa.

— Caralho, Isis... — murmurou. — Tu é tudo o que eu devia derrubar. Mas... cê é foda.

O problema era esse.

Ela era foda demais.

Não só pelo jeito que comandava, mas pela forma como o morro se curvava pra ela sem medo. Pela criança que parava de vender droga só com um grito dela. Pela velha que ganhava gás e arroz na sexta-feira. Pelo moleque que aprendeu a lutar pra sair da merda. Ela tinha moral. Ela era a porra do Estado ali.

E ele?

Um espião. Infiltrado. Mentiroso.

Virou a página da ficha.

Gráfico. Cores. Números. Códigos bancários.

Movimentações financeiras da ONG Raízes do Morro. Valores que não batiam com os registros oficiais. O rastro da grana vinha de empresas de fachada, depósitos fracionados, intermediários fantasmas. O tipo de coisa que ninguém ali desconfiaria — mas a inteligência da Civil, sim.

Theo apertou os lábios. Não era surpresa. Mas ainda assim, doía ver preto no branco.

Mais abaixo, uma transcrição de áudio:

> “Aqui ninguém mexe com criança, entendeu? Vagabundo que desrespeitar regra minha, eu mesma mando sumir do morro. Aqui tem lei. É a minha.”

Ele leu aquilo três vezes.

Ela era traficante. Mas tinha código.

Ela era perigosa. Mas com princípios.

Ela era a lei. Mas... com justiça.

E ele... já não sabia mais se tava infiltrado pra prender ela, ou pra entender ela.

Fechou a pasta com raiva. De si mesmo, dela, da missão.

Levantou.

Andou até a janela do quartinho. A favela respirava lá embaixo. Os becos iluminados por gambiarras, os fogos estourando pra anunciar mais uma carga chegando. Vida seguindo no ritmo do tamborzão, da fumaça de churrasquinho, da fé e da bala.

Lá embaixo, no meio das vielas, ela caminhava.

Rainha do morro. Cheia de pecado. Cheia de poder.

Theo encostou a testa no vidro. A brisa da madrugada batia leve, trazendo o cheiro do feijão das marmitas da ONG.

Ele fechou os olhos.

Lembrou do treino de mais cedo. Do jeito como ela observava tudo, sem perder um detalhe. Dos braços cruzados, do sorrisinho cínico, da resposta atravessada quando ele chamou de “Tia Isis”.

> — Tia Isis é só pras crianças.

— Você pode me chamar de Isis.

E o pior?

Ele queria chamar. Queria mais do que isso. Queria ela.

O celular vibrou.

Mensagem do chefe da operação:

> “Atualize seu relatório. Reunião com promotor marcada. Queremos dados suficientes pra abrir denúncia formal.”

Theo não respondeu.

Fechou o notebook. Apagou o abajur. E deitou, encarando o teto.

A missão era clara.

Mas o coração... começava a bater fora do script.

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