Mundo de ficçãoIniciar sessão“Às vezes, não somos nós que encontramos a brecha.
É o próprio alvo que abre a porta — e espera que entremos.”Entrei na sede da Polícia Federal com a sensação incômoda de que nada, a partir daquele dia, seria simples.
O prédio seguia o mesmo de sempre — concreto, vidro, corredores longos e vozes abafadas —, mas eu estava diferente. Carregava uma informação que podia mudar completamente o rumo da investigação. E, se mal conduzida, colocar todos nós em risco.
Passei pela recepção, cumprimentei alguns agentes no caminho e segui direto para a sala de reuniões da equipe especial. Eles já estavam lá quando cheguei.
Dr. Nilo organizava alguns documentos sobre a mesa, óculos apoiados na ponta do nariz, expressão concentrada. Carla estava sentada à esquerda, tablet em mãos. Jorge encostado na parede, braços cruzados, observando tudo em silêncio. Mais dois agentes da inteligência completavam o grupo.
— Bom dia — eu disse, fechando a porta atrás de mim.
— Pelo seu semblante, não é só mais um briefing — Nilo comentou, sem levantar os olhos.
Sentei-me à cabeceira da mesa, respirei fundo e apoiei as mãos sobre o tampo frio.
— Não, não é.
Todos ficaram atentos.
— Recebi novas informações sobre o Heitor Almeida Castro — comecei. — E, mais do que isso… surgiu uma oportunidade real de infiltração.
Carla foi a primeira a reagir.
— Infiltração direta?
— Muito mais do que imaginávamos — respondi. — Dentro da casa dele.
O silêncio que se seguiu foi pesado.
— Você vai precisar explicar isso com calma, Myrthes — Nilo disse, agora me encarando por cima dos óculos.
Assenti.
— Vou começar do início.
Contei sobre a academia. Sobre o acidente. Sobre como Heitor havia sido o primeiro a me socorrer. Detalhei o trajeto até o hospital, o cuidado excessivo, a postura controlada. Depois, descrevi o momento em que ouvi a ligação dele enquanto eu era atendida.
— Ele falava com alguém sobre a necessidade de ter uma babá dos filhos — expliquei. — Uma conversa tensa. Pelo tom, ficou claro que ela havia a necessidade de uma profissional
— E foi aí que você teve a ideia — Carla completou, já entendendo.
— Não na hora — corrigi. — Mas a semente foi plantada ali.
Continuei.
— Quando me perguntaram meus dados na recepção, ele estava por perto. Nome, telefone, tudo ficou registrado. Poucas horas depois que eu conversei com a Carla ontem, ele ligou.
Jorge arqueou a sobrancelha.
— Ligou achando que você era… quem?
— Valentina Cruz — respondi. — Especialista em educação infantil. Babá com experiência internacional.
Nilo soltou um suspiro lento.
— Você improvisou uma profissão para a Valentina Cruz no meio de um atendimento médico?
— Não foi improviso — retruquei. — Foi instinto profissional.
Carla sorriu de canto.
— E funcionou.
— Funcionou — confirmei. — Ele me convidou para conversar pessoalmente. Quer que eu avalie a possibilidade de cuidar dos filhos dele.
Os agentes trocaram olhares rápidos.
— Isso muda completamente o jogo — Jorge disse, descruzando os braços. — Acesso direto. Rotina. Casa. Crianças.
— Exatamente — concordei. — Nenhuma escuta ambiental nos daria isso.
Nilo ficou em silêncio por alguns segundos, analisando.
— Você sabe que uma infiltração desse tipo não é simples — disse por fim. — Envolve exposição prolongada. Vínculo emocional. Risco elevado.
— Eu sei — respondi. — E sei também que essa oportunidade pode não se repetir.
Carla deslizou o tablet pela mesa, projetando algumas informações.
— As minhas confirmações batem com isso — disse. — Heitor é o CEO do Grupo Arruda Teixeira e tem como empresa principal a Latina Engenharia Global, oficialmente uma multinacional do setor de manutenção e construção civil. Oficialmente limpas. Mas já mapeamos rotas suspeitas ligadas a contrabando de armas.
— O fundador é Paulo de Arruda Teixeira — acrescentei. — Figura intocável da elite empresarial. Heitor assumiu a operação nos últimos anos.
— Casado com a filha dele — Jorge comentou.
— Sim — confirmei. — Um casamento de conveniência. Pelo pouco que levantamos, sem afeto real. Mas isso não importa agora.
Nilo apoiou as mãos na mesa.
— Importa, sim. Tudo importa quando falamos de infiltração doméstica.
Olhei para ele.
— Estou ciente.
Houve uma pausa. Então ele assentiu.
— Muito bem. Vamos trabalhar com o cenário de que você aceita a proposta. Precisamos construir Valentina Cruz de forma impecável.
Carla já digitava.
— Histórico profissional, certificados, referências falsas, mas verificáveis.
— Cursos — Jorge completou. — Psicologia infantil básica, primeiros socorros, idiomas.
— Perfil discreto — acrescentei. — Nada que chame atenção além do necessário.
Nilo me observava com atenção excessiva.
— E você? — perguntou. — Está preparada para isso?
A pergunta não era técnica. Era humana.
— Não estou — respondi com honestidade. — Mas estou disposta.
Ele assentiu lentamente.
— Esse é o tipo de missão que não permite erros emocionais.
Engoli em seco.
— Eu sei disso.
Carla me lançou um olhar rápido, como se quisesse dizer algo, mas preferiu se manter profissional.
— Precisamos mapear a rotina das crianças — disse ela. — Idades, horários, escola, cuidadores secundários.
— E prever um plano de extração — Jorge completou. — Se algo sair do controle.
— Nada sai do controle — Nilo afirmou. — Se planejarmos direito.
Fiquei ouvindo enquanto eles montavam o esqueleto da operação. Cada palavra reforçava o peso da decisão que eu estava prestes a tomar.
Me tornar uma babá dentro da casa de um dos homens mais perigosos do país.
— Myrthes — Nilo me chamou de volta à mesa. — Você será o ponto mais vulnerável da operação. E o mais estratégico.
Assenti.
— Eu sei o que está em jogo.
Ele me encarou por alguns segundos, depois fechou a pasta.
— Então está decidido. Valentina Cruz vai entrar na vida de Heitor Almeida Castro.
O silêncio que se seguiu não era de dúvida. Era de consciência.
Levantei-me devagar.
— Não foi assim que planejei chegar até ele — confessei. — Mas talvez tenha sido exatamente assim que deveria acontecer.
O acaso.
Ou o destino.
Enquanto saía da sala, uma coisa ficou clara para mim: aquela investigação tinha acabado de ultrapassar a linha entre o profissional e o pessoal.
E eu precisava estar preparada para não me perder no caminho.
Porque, dessa vez, não era só o caso que estava em risco.
Era eu.







