Mundo ficciónIniciar sesión“O perigo não era ele. Era o que eu precisava esconder para continuar ali.”
A estrada que levava à residência de Heitor Almeida Castro parecia ter sido desenhada para intimidar.
Longa. Silenciosa. Cercada por muros altos e árvores perfeitamente alinhadas, como se cada detalhe tivesse sido calculado para lembrar a qualquer visitante que ali nada era espontâneo. Nem a beleza.
Segurei o volante com firmeza, inspirando fundo antes de passar pelo portão principal. O segurança conferiu meus dados, analisou meu rosto por segundos além do necessário e, só então, autorizou a entrada.
Era isso. Valentina Cruz atravessava oficialmente o limite.
Estacionei diante da casa e desliguei o motor, permitindo-me alguns segundos de silêncio absoluto. Ajustei a postura, alinhei a respiração, revisei mentalmente cada detalhe da identidade que eu mesma havia criado.
Valentina não era tensa. Valentina era segura. Valentina não tinha nada a esconder.
Saí do carro com passos calmos.
A mansão era imponente sem ser ostensiva. Luxo silencioso. Poder que não precisava se anunciar. Cada centímetro gritava controle — e isso dizia muito sobre o homem que comandava aquele espaço.
A porta foi aberta por uma funcionária de aparência discreta, olhar atento, postura treinada.
— A senhora Valentina Cruz? — perguntou, formal.
— Sim — respondi, oferecendo um sorriso profissional.
— O senhor Heitor já a aguarda. Por aqui, por favor.
Segui pelo corredor amplo, observando sem parecer curiosa demais. Câmeras discretas embutidas. Portas fechadas. Um ambiente organizado demais para ser apenas uma casa de família. Ali, tudo parecia funcionar sob vigilância constante.
Ele estava na sala quando cheguei. Meu coração disparou ao vê-lo. Sempre elegante. Mesmo quando éramos pobres, vestindo roupas usadas e desgastadas, ele se destacava.
Heitor Almeida Castro se levantou assim que me viu.
Terno claro, camisa sem gravata, mangas levemente dobradas. O mesmo homem que havia me carregado às pressas na academia agora estava perfeitamente alinhado, inteiro, no controle absoluto de si.
— Valentina — disse, estendendo a mão. — Fico satisfeito que tenha vindo.
— Obrigada pelo convite — respondi, apertando sua mão com firmeza medida. — Foi gentil da sua parte.
O toque durou um segundo a mais do que o necessário. Não foi descuido. Foi observação.
Ele indicou o sofá, mas continuou me avaliando enquanto eu me sentava. O olhar dele percorreu detalhes pequenos demais: postura, respiração, o jeito como alinhei a bolsa ao lado do corpo.
Ele conhecia Myrthes. Eu precisava ser apenas Valentina.
— Fique à vontade.
Sentei-me com elegância contida. Nada exagerado. Nada submisso.
Ele não desviava o olhar.
Não era invasivo. Era atento. Um tipo de atenção que me deixava alerta.
— Antes de qualquer coisa — começou — preciso deixar claro que sou bastante criterioso quando se trata dos meus filhos.
— Imagino — respondi, com naturalidade. — Crianças precisam de estabilidade. Principalmente em ambientes exigentes.
A sobrancelha dele se arqueou de leve. Interesse genuíno.
— Vejo que pensa assim também.
— Não apenas penso. Trabalho com isso há anos.
Ele se sentou à minha frente, mantendo uma distância calculada.
— Conte-me sobre sua experiência.
Era o momento.
— Sou formada em psicopedagogia, com especialização em educação infantil e desenvolvimento emocional — comecei, no tom exato. — Trabalhei com famílias no Brasil e fora do país. Meu foco sempre foi criar rotinas seguras, respeitando os limites emocionais da criança… e da família.
— E por que babá? — ele perguntou. — Alguém com seu currículo poderia estar em uma escola de elite.
Sustentei o olhar.
— Porque a base emocional não se constrói em salas cheias. Ela se constrói no cotidiano. No cuidado diário. Na presença constante.
O silêncio se instalou por alguns segundos.
— Meus filhos passaram por muitas mudanças — ele disse, por fim. — Precisam de alguém firme…, mas afetuosa.
— Crianças percebem quando são tratadas como um problema a ser resolvido — respondi. — Ou como pessoas em formação. A diferença muda tudo.
Algo atravessou o olhar dele.
Não foi um sorriso. Foi reconhecimento.
— Eles vão descer em alguns minutos — informou. — Quero que os conheça.
Assenti, sentindo o estômago se contrair.
— Claro.
O grande teste.
— Fui informado de que você não costuma aceitar qualquer proposta — ele comentou, recostando-se.
— Não costumo mesmo.
— Então por que aceitou a minha?
Isso pode ser uma armadilha.
— Porque percebi urgência — respondi. — E quando há crianças envolvidas, urgência costuma significar negligência emocional. Não gosto disso.
Ele me observou com intensidade renovada.
— Você fala com muita segurança.
— Não confunda com arrogância — retruquei. — Segurança vem de preparo. E eu me preparei.
Foi então que ouvi passos na escada.
Duas crianças surgiram no topo. Um menino e uma menina. Olhares atentos, curiosos, desconfiados.
Meu peito apertou.
Flash.
Braços pequenos. Respiração suave. O peso de um recém-nascido nos meus braços. Meu filho.
O cheiro. A ausência.
Engoli em seco.
— Filhos — Heitor chamou. — Venham cá. Esta é a Valentina.
Eles se aproximaram devagar.
Agachei levemente para ficar à altura deles.
— Oi — disse, com suavidade. — Prazer em conhecer vocês.
A menina me analisou com seriedade surpreendente.
— Você vai morar aqui? — perguntou.
— Talvez — respondi, sorrindo. — Mas só se a gente se der bem.
O menino cruzou os braços.
— Você é brava?
— Só quando preciso proteger alguém.
Eles se entreolharam, cúmplices.
— Acho que vou gostar dela — a menina decretou.
O canto da boca de Heitor se curvou, quase imperceptível.
— Vejo que tem talento natural — comentou.
— Crianças sentem quando não são julgadas — respondi, levantando devagar.
— Preciso que saiba — ele disse — minha rotina é intensa. Confio pouco. E observo tudo.
Sustentei o olhar.
— Então vamos nos entender bem.
— Quero que comece em breve.
Meu coração acelerou, mas meu rosto permaneceu sereno.
— Podemos alinhar os detalhes.
— Minha assistente entrará em contato.
Levantou-se, encerrando a entrevista.
— Seja bem-vinda, Valentina Cruz.
Apertei sua mão. Ele não soltou de imediato. Seus olhos permaneceram fixos nos meus, como se buscassem algo que ele não sabia nomear.
— Obrigada pela confiança, senhor Castro.
Ao sair da mansão, o ar parecia mais denso.
Dentro do carro, permiti que o controle vacilasse por um único segundo.
Eu tinha conseguido. Estava dentro.
Mas sabia: a partir daquele momento, cada gesto seria avaliado. Cada silêncio, interpretado. Cada emoção, um risco.
Valentina Cruz havia passado no teste.
Agora, Myrthes Valença precisava sobreviver a ele.
Porque naquela casa, máscaras não eram opcionais.
E retirar a errada poderia custar tudo.







