A viatura da Assistência Social chegou com a discrição de quem já veio a lugares como aquele mais vezes do que é justo. Grace desceu com uma pasta diferente da noite anterior e uma expressão levemente mais humana, menos burocrática. Um segundo agente — o mesmo que eu vira no IML? — caminhou ao lado, carregando uma caixa vazia. O policial plantonista abriu caminho.
— Senhor Collins — ela me cumprimentou com um inclinar de cabeça. — Sinto insistir com o senhor logo cedo, mas precisamos registrar presença do familiar, colher declarações e listar os bens essenciais das crianças para as próximas horas. Itens de uso — roupas, algum brinquedo, remédios, documentos. Depois, seguimos os protocolos de custódia temporária. — Proceda — autorizei, com um gesto seco. A governanta surgiu com duas caixas de papelão reforçado. Colocou-as sobre a mesa com a reverência que outros reservam a relíquias. Um olhar rápido para mim, outro para Grace. — São as memórias delas — disse, a voz firme como se, ao nomear, ela defendesse. — As joias da senhora, fotos, álbuns, certidões, a gravação da primeira palavra da Charlotte, o vídeo da Emily ainda no hospital. Eu… mantive protegido. Grace não tocou de imediato. Abriu a pasta, retirou um formulário e colocou a caneta sobre a mesa. — Obrigada. Vou registrar tudo por escrito e vou assinar com recibo. A senhora assina como entregante. Esses itens serão vinculados ao processo das menores e ficarão sob minha responsabilidade direta até decisão contrária. Eu prometo que ninguém vai perder nada. A governanta respirou como quem sai d’água. — E as meninas? — perguntou, sem me olhar. — Serão acompanhadas por uma equipe nossa — respondeu Grace, com uma doçura que não soava condescendente. — Vamos levá-las a um centro de acolhimento temporário. Há psicólogos lá. Depois, o Tribunal decide o encaminhamento. Por ora… é o mais seguro. Eu intervim, porque os formalismos exigem a voz do parente: — Conforme já informei, eu me declaro incapaz de assumir a guarda — enunciei como em audiência. — Minha vida profissional e pessoal é incompatível com o cuidado diário de duas menores. Estou, porém, diligenciando a preservação do espólio. Já solicitei ao Tribunal de Sucessões a minha nomeação como personal representative interino, de modo a evitar dilapidação. Providenciarei a manutenção da casa, pagamento de utilidades e segurança patrimonial. Qualquer despesa relacionada às menores que exija extração de recursos será submetida ao juiz competente. Grace anotou sem levantar os olhos. Eu quase podia ver as engrenagens na cabeça dela mensurando minha frieza, pesando se eu era apenas um homem prático ou algo pior. Não me importa o veredicto de agentes sociais. Importa o registro do cartório, o carimbo. — Preciso, então, da sua assinatura aqui, senhor Collins — ela empurrou um conjunto de documentos. — É o Termo de Não Oposição à Custódia Temporária pelo Estado e a Declaração de Incapacidade Fática para fins de guarda, baseada nas razões que o senhor expôs. Há também a Autorização Provisória para Acesso a Documentos Patrimoniais das menores, onde consta que qualquer movimentação requer aval do Tribunal. Assine com data de hoje. Assinei. A caneta deslizou sem resistência. O papel aceita tudo. O tribunal aceita o papel. — E a cremação? — perguntei, buscando encerrar pendências. — O laboratório finaliza a documentação até o fim do dia — disse Grace. — As cinzas ficarão sob custódia até definição de local de destinação. Sugiro que isso seja tratado pelo personal representative quando nomeado. A senhora governanta pode indicar preferências que conhecesse do casal. A governanta ergueu a cabeça, os olhos úmidos mas claros. — Eles gostavam do lago — disse. — Onde costumávamos levar as meninas no verão. Um lugar calmo. Eles riam muito lá. — Anotado — respondi, porque sempre é assim: riso, lago, cinzas. Subimos. Bati levemente na porta do quarto maior. A governanta abriu uma fresta, a luz amarelada do abajur derramando sobre o corredor. As meninas estavam acordadas, embora o rosto da pequena dissesse que não entendia o que se passava. Charlotte, sentada na cama, apertava a barra do pijama entre os dedos, tão composta que era quase cruel. — Bom dia, senhoritas — disse baixinho, como se a delicadeza pudesse reduzir a altura do abismo. Não soube o que acrescentar. Não há vocabulário para isso que não pareça mentira. Grace entrou depois de mim, desacelerando o passo, o corpo todo dizendo “eu não vou feri-las”. A agente se agachou à altura da pequena. — Emily, certo? Eu sou a Grace. Vou cuidar de vocês hoje. Vamos dar uma volta, pegar um pouco de ar, depois a gente volta para brincar, está bem? A pequena a olhou como se medisse a palavra “cuidar”. Crianças sabem. Antes da linguagem, sabem. — E a mamãe? — a voz dela, um fiapo. Charlotte virou o rosto, como quem se prepara para apanhar. Grace respirou. — A mamãe e o papai tiveram um acidente — sua voz era um tecido posto sobre o gelo. — A gente vai conversar com calma. Eu prometo. A governanta segurou o choro com ambas as mãos. Voltei dois passos, porque aquilo não era meu — e porque eu não aguento demonstrações que me exigem algo que não escolhi dar. — Precisamos separar algumas roupas, um casaco, o bichinho de pelúcia preferido — orientou Grace, sem tirar os olhos das meninas. — E qualquer remédio de uso diário. A senhora pode ajudar? — ela se voltou à governanta. — Claro… — a mulher sussurrou. Observar uma casa nesses minutos é como ver um navio inclinar. Há um ranger de fibras que antecede o estalo. A governanta arrumou uma pequena mochila azul para a menor, uma mochila cor-de-rosa para Charlotte. O urso da Emily foi colocado com muito cuidado no topo, como se pudesse respirar melhor assim. — Vamos descer, tudo bem? — disse Grace. — Eu estou aqui. Não solto a mão de vocês. Descemos em fila breve, o corredor agora cheirando a café que alguém, por instinto, preparou sem perceber. No hall, as caixas com as memórias repousavam como sentinelas. Grace verificou os recibos, assinou, entregou uma via à governanta. A mulher segurou o papel como se fosse, enfim, alguma coisa que ela pudesse manter. — Eu vou… eu volto amanhã para ver se precisam de algo — a governanta disse às meninas, desesperada por lhes oferecer qualquer fio. — Eu vou estar aqui. Emily agarrou a barra do robe dela, depois soltou. Charlotte apenas assentiu, a mandíbula tensa. — Senhor Collins — Grace me chamou de lado, voz baixa. — Qualquer comunicação do Tribunal será enviada ao endereço que o senhor indicou. Hoje mesmo a custódia temporária será formalizada. Haverá uma audiência breve em até setenta e duas horas. Se o senhor quiser manifestar alguma preferência quanto à destinação inicial das menores… — Não tenho. Façam o que for mais eficiente — respondi. — Eu cuidarei do patrimônio. Ela examinou meu rosto um segundo, como quem busca uma fissura. Não encontrou. Não há fissuras onde o concreto foi adensado por anos de utilidade. A porta se abriu para a manhã. O ar frio entrou sem pedir licença. As meninas caminharam para fora com passos pequenos. O policial segurou a porta do carro; Grace instalou a menor na cadeirinha com um gesto que eu reconheci como prática, não como instinto. Charlotte subiu sem ser conduzida. O motor ligou; o som preencheu o que as palavras não alcançam. Fiquei parado sob o batente até que as lanternas traseiras desaparecessem na curva. Atrás de mim, a casa respirou de um jeito novo: cômodos iguais, destino outro. A governanta sentou-se de novo, mas não chorou. Abriu a mão, leu o recibo, colocou-o dobrado no bolso do robe. Depois, com uma reverência que eu não merecia, recolheu as duas caixas restantes e as entregou a mim. — São apenas documentos — explicou, num suspiro que pedia desculpa por existir. — Certidões, escrituras, notas fiscais, a apólice da casa. O senhor… como representante… talvez precise. — Precisarei — confirmei, deixando as caixas junto ao aparador de madeira, sob a fotografia dos quatro no parque. — Trancarei as janelas hoje. Voltarei com um inventariante para o levantamento. Até segunda ordem, ninguém entra sem minha autorização. Ela assentiu, num gesto que reconhece a hierarquia dos fatos. Peguei o telefone mais uma vez. — Owen. Inclua a casa inteira no pedido de preservação de bens. Vou mandar fotos dos itens de alto valor para anexar. Providencie também redirecionamento de correspondência. E contate o banco: bloqueio preventivo em todas as movimentações vinculadas ao CPF de Edmund. Diga que é por ordem iminente do Tribunal. Se pedirem documento, você manda o rascunho do requerimento. A urgência é minha. — Sim, senhor. Desliguei. Olhei a sala — o piano, as molduras, a poltrona onde talvez Margaret lesse para a pequena. O cheiro doce de alguma coisa que a governanta havia assado na tarde anterior ainda resistia, mínimo e teimoso. “Amavam”, dissera ela. Não duvido. Mas o amor é um gasto alto demais para quem vive de eficiência. E, ao fim, é o papel que decide. Puxei a porta. A fechadura cravou o som de um ponto final. Lá fora, a manhã se abriu em um cinza limpo. As cinzas deles, em breve, seriam só isso: um destino prático que não atrapalha ninguém. As meninas, um processo com número. E eu, o único parente vivo, o suficiente para assinar o que precisa ser assinado — e ausente o bastante para não me tornarem refém. Caminhei até o carro. Havia muito a fazer antes do meio-dia.