Philipe Collins Bradock
O telefone tocou em um horário que só traz notícia ruim. Eu já estava com a mala pronta no quarto de hotel, passagens impressas, motorista esperando no saguão. Atendi por reflexo, mais por irritação do que por dever. — Senhor Phil Collins? — a voz do homem tinha aquele grave cansado de plantão noturno. — Quem fala? — Polícia Estadual de Massachusetts. Precisamos que o senhor compareça ao Instituto Médico Legal. É sobre o senhor Edmund Collins. Seu primo. Fiquei em silêncio um segundo inteiro, apenas ouvindo o zumbido distante da ventilação do quarto. Edmund. Mesmo morto — se é que estava — continuava inconveniente. Passei a mão no nó da gravata, desapertei. A outra mão já buscava a carteira onde sempre deixo um cartão com os números que importam. — É realmente necessário? — perguntei sem disfarçar a impaciência. — Tenho um voo nas primeiras horas da manhã. — O senhor é o único parente vivo. A esposa dele, Margaret, era órfã. Não há mais ninguém, senhor Collins. As crianças estão sob nossa responsabilidade até definição judicial. As… crianças. As duas. Eu sabia. Era impossível esquecer as fotos de Natal que minha tia insistia em enviar, mesmo depois de morta — pequenos cartões daquelas meninas sorrindo, a mais velha com uma seriedade incômoda para a idade, a menor um feixe de braços no colo da mãe. Respirar de leve se tornou difícil, não por comoção, mas pelo cálculo: responsabilidade implica custo, tempo, rumor, tudo o que meu calendário não comporta. — Estou a caminho. Desliguei sem despedida, vesti o sobretudo e desci. A neve fina não chegava a repousar no asfalto; transformava-se em uma película brilhante de água fria. Pedi ao motorista que acelerasse. Não trocamos palavra. O Instituto Médico Legal de Boston tem o mesmo ar de todos os lugares onde a vida termina: corredores frios, paredes claras, o cheiro inconfundível de desinfetante tentando vencer o que não se vence. Informei meu nome na recepção; uma mulher de expressão profissional fez um gesto para que eu aguardasse. O relógio na parede marcava algo entre a noite e o nada. — Senhor Collins — um homem magro, de jaleco, surgiu numa porta lateral — sou o doutor Avery. Lamento chamá-lo a essa hora. É… um acidente na estrada, desvio por animal na pista, as barreiras cederam na ponte. Fogo. Não há muito a dizer. Ele disse sem dizer. Assinei uma pilha de autorizações com a caneta que carrego justamente para isso — papéis que mantêm o mundo em ordem quando as pessoas não mantêm. O metal da caneta estava gelado nos dedos; percebi as mãos tremendo e não soube de imediato se era pelo frio do corredor ou pelo que viria a seguir. Conduziram-me a uma sala de identificação. Não havia corpos, não do jeito que a mente espera. Havia fragmentos, a metálica miséria do que um carro em chamas faz com a carne. No cabide, um resto chamuscado de tecido que um dia foi o vestido de Margaret; em uma bandeja, um relógio de pulso que reconheci de Edmund — presente em uma foto recente no escritório, ele sorrindo com a pose do homem que pensa que os anos não o alcançarão. Alcancei o relógio, virei, li as iniciais gravadas no verso. Não precisei de mais nada. — Eu… confirmo — minha voz saiu sóbria, impessoal. — São eles. O doutor assentiu, descansando por um segundo os olhos sobre mim como quem mede a resistência de uma tábua. Agradeci com um aceno. — Precisamos falar da destinação — disse uma mulher à porta, pasta parda junto ao peito. Trazia o distintivo de Assistência Social preso ao casaco. — Sou a agente Grace Thompson. Lamento muito, senhor Collins. Quanto aos restos… por causa do estado em que se encontram, a recomendação é cremação. Os relatórios vão para o Ministério Público e para o Tribunal de Família e Sucessões, mas… necessitamos da sua autorização formal. Grace. Guardei o nome sem pensar. Assinei também essa autorização, linha por linha, sem hesitar. Cremação encerra perguntas; evita peregrinações, evita litígios sentimentais de tia distante que aparece do nada. Não gosto de portas abertas. A vida já tem corredores demais. — E as crianças? — perguntei, como quem cumpre protocolo. — Por ora estão sob custódia temporária, na residência, acompanhadas por uma governanta e uma babá — respondeu Grace. — A polícia preservou a cena doméstica, ninguém as incomodou. Mas precisamos que um familiar compareça pela manhã para medidas de tutela e inventário. O senhor é o único parente listado. — “Listável”, seria a palavra — respondi, frio. — Eu sou advogado, senhorita Thompson. Viajo com frequência, horas imprevisíveis, compromissos inadiáveis. Não possuo esposa, filhos, e, sinceramente, nenhuma aptidão para a rotina que duas crianças exigem. O Estado dispõe de toda uma estrutura de acolhimento. Imagino que a senhora saiba. Ela me olhou nos olhos. Não vi reprovação; vi leitura. Profissionais como ela aprendem a ver através de camadas. — Sei — ela disse baixinho. — Mas também sei o que isso custa. — Todos sabemos — respondi, e fechei a pasta. Saí do IML pouco antes das quatro da manhã. O céu de Boston, naquele intervalo de hora e nada, tinha um azul doentio. No banco de trás, peguei o telefone e disquei sem olhar: — Owen, preciso que protocole ainda hoje dois requerimentos: um pedido de letters of administration no Tribunal de Sucessões do condado — prioridade por consanguinidade — e uma medida cautelar para preservação de ativos do espólio de Edmund Collins: imóveis, contas, participações. Use meu endereço profissional para correspondência e peça a designação de personal representative interino. E, Owen… deixe claro que não posso assumir guarda de menor por evidente inaptidão fática — viagens, ausência de residência adequada, carga horária incompatível. Redija de forma clínica. — Entendido, senhor Collins. Sobre as menores, quer que… — a hesitação do meu assistente me irritou. — O Estado sabe o que fazer com crianças, Owen. Sabe disso há décadas. Faça o seu trabalho. Desliguei e pedi ao motorista que seguisse para a casa de Edmund. Eu queria ver. Não por saudade — jamais —, mas porque um homem precavido conhece o perímetro antes de avançar. Inventário é menos sobre bens e mais sobre terreno. A fachada, àquela hora, parecia uma fotografia antiga: luzes apagadas, cortinas pesadas, o jardim adormecido sob o toque úmido da madrugada. Havia um carro de polícia parado discretamente, sem giroflex. Um agente me reconheceu, abriu o portão sem perguntas. Dentro, o silêncio tinha textura. A governanta estava na cozinha, sentada com as mãos no colo, um robe amarrado com força demais. Levantou ao me ver. O rosto, amassado pelo choro. — Senhor Collins? — a voz veio num fio. — Eu… pensei que fossem chegar juntos, os senhores… me desculpe. As meninas estão dormindo. Assenti. Não havia por que mentir, tampouco por que ser gentil. A gentileza, aprendi cedo, cria deveres. — A polícia já lhe disse? Ela assentiu de novo, os olhos enchendo. Uma xícara esquecida na mesa extravasava chá frio. — Sinto muito — disse, porque as pessoas esperam essas duas palavras quando o mundo delas contradiz a continuidade. — A senhora… trabalhou aqui há quanto tempo? — Desde que a pequena nasceu — respondeu, a voz falhando ao pronunciar “pequena”. — A Emily. Dois aninhos. Charlotte tem sete. São… eram… crianças boas. Eles… eles amavam muito as meninas, senhor Collins. “Amavam.” O verbo na casa soava ofensivo à ordem. Evitei suspirar. — A Assistência Social estará aqui pela manhã, com a senhora Thompson — informei. — Farão perguntas, recolherão documentos. Haverá um inventário. Eu tratarei da parte patrimonial. Quanto às crianças, temporariamente estarão sob custódia do Estado até decisão judicial. A governanta levou as mãos à boca por um segundo. Depois, recolheu-as, como quem aceita que o corpo inteiro precisa se comportar. — O senhor… vai levá-las? — a pergunta vinha de um lugar que eu não queria visitar. — Não posso — respondi. — Não devo. Ela baixou os olhos. Ficamos um minuto escutando algum cano longínquo estalar. — Há… coisas que eram da senhora Margaret e do senhor Edmund — ela disse, vazando a frase devagar. — Eu… guardei. Joias dela, documentos, certidões, o álbum do casamento, vídeos de quando a Charlotte nasceu, a pulseirinha da maternidade da Emily. Eu… achei melhor separar. A senhora da assistência social… a Grace… pediu que tudo fosse preservado para as meninas. Para que elas… para que elas não… — a voz quebrou. Não terminei a frase por ela. Senti apenas aquela conhecida impaciência com o sentimental que atravanca o objetivo. No entanto, observei: a mulher havia sido, de fato, leal. Lealdade é um ativo que não se compra; anota-se. — Mantenha essas caixas com a senhora até a chegada da assistente — ordenei, gentil dentro da dureza. — E não as entregue a ninguém sem recibo formal. Assinatura, nome completo, órgão, número de identificação. A senhora entende? — Entendo, senhor Collins. Caminhei pela sala de estar. Fotografias em molduras prateadas: Edmund com as meninas em um parque, Margaret segurando um bolo desajeitado com uma velinha torta, Charlotte encarando a câmera com uma concentração adulta. Relicários expostos, a economia da ternura posta em móveis. Os agentes recolhiam notas. Anotei mentalmente o piano, as obras de arte de assinatura conhecida, o relógio de parede de manufatura cara. Tudo isso seriam linhas em uma planilha, cifras sob minha coluna. A piedade não paga impostos. Às seis e meia, o amanhecer estendeu uma luz pálida sobre o corredor. Ouvi um sussurro no andar de cima e o movimento cuidadoso de passos pequenos. A governanta ergueu-se num salto. — Volte para o quarto delas — pedi, seco. — Não lhes diga nada ainda. Essa comunicação é responsabilidade de profissionais. Elas… entenderão aos poucos. Ela assentiu, sumiu escada acima como uma sombra. A casa retomou a respiração lenta.