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debaixo da pele parte 2

Naquela noite, Helena não dormiu.

Deitada na cama de hóspedes, em um dos quartos da casa de Lucky, ficou observando o teto como se esperasse que alguma verdade despencasse sobre ela. Mas o que caía era o peso das memórias. E da dúvida.

A imagem da tia sorrindo ao lado de outra mulher voltava como um pesadelo recorrente, ainda que seus olhos estivessem abertos. Como aquela foto fora parar ali? Como Lucky podia tê-la guardado sem saber quem ela era?

Ou… ele sabia?

A pergunta se repetia como um sussurro maligno. Não havia prova, não havia lógica. Mas algo dentro dela — o mesmo instinto que a fizera entrar no jornalismo investigativo — dizia que aquilo não era coincidência. Nada na vida de Lucky parecia ser.

Ela se virou na cama, os lençóis úmidos de suor, a mente em espiral. A lembrança da música tocada naquela noite vinha misturada à imagem da tia desaparecida. As notas de Of the Past agora pareciam um lamento. Um chamado. Um pedido de socorro antigo demais para ser ouvido com clareza.

E ainda assim, mesmo com o medo crescendo, ela não queria ir embora.

Havia algo nele — algo real, ferido, talvez perigoso — que a prendia. Como se, de algum modo estranho e trágico, seus passados estivessem entrelaçados muito antes de se conhecerem.

Na manhã seguinte, o céu estava opaco, como se o mundo compartilhasse da insônia dela. Helena saiu da casa sem fazer barulho. Disse que precisava de ar, que precisava pensar. Lucky não insistiu. Apenas a observou com um olhar que ela não soube decifrar.

No caminho de volta para a cidade, o rádio do carro tocava músicas antigas. Ela não prestava atenção. O som era um ruído distante diante do redemoinho de pensamentos.

Quando chegou em casa, havia um bilhete embaixo da porta. Papel amassado, tinta borrada. Assinado por alguém que ela não via há meses.

Delegado Ramiro. Precisamos conversar.

O bilhete vinha com um número de telefone. Ela ligou. Ele atendeu no segundo toque.

— Que bom que me ligou, Helena. Você ainda está escrevendo sobre o músico, o... Lucky Valley?

— Estou. Por quê?

— Pode vir até a delegacia hoje? Tenho algo que talvez você queira ver.

A sala da delegacia tinha o cheiro morno de papel envelhecido e café frio. O delegado Ramiro estava de pé junto à janela, com as mãos cruzadas nas costas e o semblante sério. Quando Helena entrou, ele virou-se lentamente, como se calculasse cada palavra antes de dizê-la.

— Obrigado por vir, Helena. Eu sei que você tem passado um tempo com... Lucky Valley.

Ela estreitou os olhos, surpresa.

— Como você sabe disso?

— Jornalistas chamam atenção. Músicos reclusos, mais ainda. E quando os dois se cruzam, tem sempre alguém observando.

Helena sentou-se, cruzando os braços. Um sinal de defesa involuntário.

— O que o senhor quer de mim, delegado?

Ramiro puxou uma cadeira e sentou-se à sua frente. Colocou um envelope pardo sobre a mesa, mas não o abriu.

— Isso não é uma acusação formal. Não ainda. Mas estamos olhando de perto para o nome dele em alguns casos antigos de desaparecimento. Pessoas que sumiram sem deixar rastros. Algumas, inclusive, ligadas ao meio musical. Ou à própria família dele.

Helena não disse nada. O coração acelerado fazia seu corpo latejar. Ela sabia onde aquilo ia dar.

— Eu estou dizendo isso porque você é jornalista. E, mais importante: porque está perto demais dele. Isso pode te colocar em risco.

Ele a encarou por um longo momento antes de continuar:

— Não estou pedindo que você o denuncie. Nem que me traga provas agora. Só queria que soubesse. E, se topar ajudar… com sua sensibilidade, com o que ouvir ou vir… pode nos dar uma chance de impedir que mais alguém desapareça.

Helena olhou para o envelope, depois para as mãos. A lembrança da foto da sua tia, da música, da noite anterior, tudo misturado. A cabeça girava. A garganta estava seca.

— Eu... não sei se posso ajudar — disse ela, por fim. — Isso está me pegando de surpresa. Eu preciso de um tempo.

O delegado assentiu, respeitoso.

— Claro. Só fique atenta. E segura.

Ela saiu da sala como quem sai de um sonho ruim. O mundo parecia mais pesado do lado de fora.

Helena andou sem rumo pelas ruas da cidade. O sol fraco da manhã não aquecia o bastante para afastar o frio que ela sentia por dentro.

Lucky. Desaparecimentos. Perigo. E aquele pedido de ajuda velado.

Ela não conseguia processar tudo. Não queria. Parte dela ainda se agarrava à ideia de que aquilo tudo era um grande mal-entendido. Lucky era excêntrico, sim, recluso e assombrado pelo passado, mas... criminoso?

E, mesmo que fosse… por que ela? Por que justo ela teria sido puxada para esse vórtice?

Por um momento, pensou em voltar para casa e escrever. Talvez colocar tudo em palavras a ajudasse a entender. Mas ao abrir o laptop, ficou encarando a tela por longos minutos, sem conseguir digitar uma linha.

Ela estava começando a perceber: havia mais verdades naquele homem do que ela poderia suportar.

E talvez... algo dentro dela já soubesse disso desde o primeiro momento em que ele tocou o piano.

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