A noite chegou mais cedo naquela sexta-feira, como se quisesse esconder o mundo sob um manto espesso. Helena voltou à casa de Lucky com passos hesitantes. Havia silêncio demais nos arredores, e um leve cheiro de madeira queimada no ar. Ela quase bateu na porta, mas ele já a esperava.
— Eu sabia que você voltaria — disse ele, com a voz baixa, quase um sopro. Helena o encarou, tentando decifrar aquele olhar turvo, misturado de dor e ternura. — Preciso conversar com você — disse ela. — E eu com você. Mas... deixa eu começar. Ele a conduziu até o estúdio, onde o piano descansava como um animal adormecido. Mas desta vez, não tocou. Sentou-se à beira de uma poltrona funda, o rosto entre as mãos. E falou. — Tem gente me vigiando. Sei disso há meses. Eles acham que eu sou culpado por coisas que não cometi. Ou talvez... por coisas que não consigo lembrar. Helena não respondeu. — Mas você, Helena... você tem sido luz. Você chegou como quem não sabia, mas já me conhecia. Como se a sua alma lembrasse de mim antes do seu corpo entender. Ela sentiu o chão girar. O coração batia como se estivesse sendo tocado por dentro. Lucky se aproximou devagar, como quem respeita um abismo. — Se eu cair, quero cair com você. Não por fraqueza. Mas por verdade. Ela não sabia o que dizer. Ele estendeu a mão, e ela a tomou como quem cede ao que já é inevitável. A casa parecia envolta em névoa. Os ruídos do mundo haviam desaparecido. Lucky a guiou para o andar de cima, onde a luz era tênue e quente. O quarto parecia um espaço fora do tempo: lençóis brancos, cortinas finas dançando ao vento, e um disco de jazz girando em algum canto, quase inaudível. Ele a olhou como se jamais tivesse visto beleza antes. — Você é feita de silêncio e tempestade ao mesmo tempo, Helena. Ela sorriu com os olhos marejados, e então se deixou desabotoar — não apenas a blusa, mas o medo. O passado. A dúvida. Lucky a despiu como quem desvenda um poema antigo. Os dedos dele percorriam sua pele como quem reconhece uma carta perdida. Cada toque era uma memória inventada. Cada beijo, um recomeço. Deitados, entre os lençóis, seus corpos se encontraram como se já tivessem se amado em outras vidas. Não houve pressa. Apenas respiração, calor e um ritmo que era só deles. Helena se entregou por completo — não apenas ao corpo de Lucky, mas ao enigma dele. À dor dele. À música que ecoava em seus ossos. — Fica — sussurrou ele, já entrelaçado nela. Ela encostou a testa na dele e respondeu, sem voz, apenas com um gesto que dizia: sim. Sim ao amor, sim ao abismo. E naquele instante, o mundo lá fora deixou de existir. A madrugada avançava devagar, como se não quisesse interromper o que havia acontecido ali. Helena ainda sentia o calor do corpo dele junto ao seu, mesmo depois de o toque cessar. O quarto agora era feito de suspiros lentos e da brisa que entrava pelas janelas entreabertas. Do lado de fora, as árvores sussurravam segredos. Do lado de dentro, os corações batiam em silêncio. Lucky estava deitado de costas, o braço estendido em sua direção. Helena apoiava a cabeça sobre o peito dele, ouvindo o som de um mundo que existia só ali. Os dedos dele brincavam vagamente com os fios do cabelo dela. — Nunca fui bom em pedir nada — disse ele, quase em sonho. — Mas quero que você fique. Ela não respondeu. Apenas se aninhou mais perto, como quem já ficara. Houve um tempo de silêncio, e então ele acrescentou: — Você não imagina quantos dias eu sobrevivi só com a ideia de que alguém como você existia. Alguém que me ouvisse sem medo. Que me tocasse como se eu fosse mais que um nome manchado. Ela apertou os olhos com força. O peito dela estava pesado — de ternura, de dúvida, de algo que ainda não tinha nome. Quando amanheceu, o quarto estava cheio de luz dourada. Helena acordou antes dele. Observou Lucky dormindo com a expressão serena de quem havia, por fim, descansado de um inferno longo demais. Ela passou a ponta dos dedos pelo rosto dele, lentamente, como quem queria decorar aquele instante. Havia amor ali. Ou algo parecido. Mas também havia medo. Levantou-se sem fazer barulho. Caminhou até a janela e ficou olhando o jardim úmido de orvalho. Lembrou-se do envelope na delegacia. Das fotos. Das perguntas que não queria responder. E então, algo estranho. Sobre a cômoda, entre partituras antigas, havia um colar. Pequeno. Discreto. Mas familiar. Ela se aproximou e pegou o objeto entre os dedos. O coração disparou. Era idêntico ao que sua tia costumava usar. Helena ficou imóvel por um longo momento. Depois, colocou o colar de volta, exatamente onde estava. Voltou para a cama. Envolveu Lucky com os braços e fechou os olhos. Por fora, tudo era paz. Mas dentro dela, o abismo começava a se abrir de novo. "Ela estava nos braços dele, mas parte de si já caminhava no escuro."