Mundo de ficçãoIniciar sessãoPonto de vista do narrador
Ele a encarava como se alguma memória estivesse tentando emergir — uma impressão vaga, um brilho reconhecível nos olhos dela, mas que insistia em escapar. Natália, por outro lado, sentia o peso de cada segundo naquele ambiente elegante demais para ela. Tudo ali parecia gritar que ela não pertencia àquele mundo. Mas ele, tinha um jeito calmo, firme, acolhedor. E aquilo tornava tudo menos assustador. — Água? Café? Suco orgânico? — perguntou ele, com sua educação impecável. — Água, por favor — respondeu Natália, a voz quase sumindo. Ele indicou o sofá branco, moderno, certamente mais caro do que tudo que ela já teve. No tapete ao lado, a menininha em jardineira jeans, camiseta rosa e botas infantis brincava com ferramentas de brinquedo. Ao perceber Natália, parou tudo, encarando-a com uma curiosidade pura, encantada. — Você trabalha com crianças, certo? — perguntou o pai. — Não profissionalmente — ela admitiu. — Mas sempre cuidei dos meus irmãos. E estou fazendo pedagogia. Quero trabalhar com crianças com necessidades especiais. A entrevista fluiu surpreendentemente bem. Ele fazia perguntas sérias, mas nunca frias. Era exigente, mas respeitoso. E, o tempo todo, demonstrava algo que poucos percebiam — o cuidado genuíno com quem entrava em sua família. Natália começou a relaxar. Até que a menina se levantou, caminhou até ela e segurou seu dedo com uma confiança tão imediata que fez o pai parar no meio da frase. — Táia!! É Táia! Pai. Môgu! — disse a pequena, empolgadíssima. O pai piscou, reconhecendo na mesma hora de onde lembrava daqueles olhos suaves e daquela postura atenciosa. A papelaria. A borracha da Moranguinho. A garota gentil que havia encantado sua filha desde cedo. A expressão dele suavizou. E Natália sentiu algo inesperado — a sensação de que ele a observava de verdade agora, não mais como entrevistador, mas como homem. Foi um olhar breve, contido, porém profundo. O tipo de olhar que aquece a pele antes de aquecer o coração. A decisão estava tomada. — Natália — disse ele, com uma calma firme. — Você me parece responsável, educada e verdadeira. Ele fez um gesto amplo para a casa. — Tudo isso só funciona porque confio nas pessoas certas. E você passou na entrevista naquele dia na papelaria sem nem saber. A filha agora estava no colo de Natália, completamente à vontade. — Se você aceitar — continuou ele — o trabalho é seu. Natália piscou, surpresa. — S-sério? Assim tão rápido? — Eu sigo minha intuição — respondeu ele. — E sigo o que meu filho diz também. Ele falou muito bem de você. Ela corou. E naquele instante, a porta automática se abriu. Carlos Eduardo entrou. Ele parou ao ver Natália com sua irmãzinha no colo — uma imagem tão bonita, tão natural, que o próprio Carlos ficou sem fôlego. Natália se levantou devagar, segurando a pequena. Eles trocaram um sorriso tímido, cheio de significado. E atrás deles, o pai observava. Ele observou por tempo demais. O olhar dele percorreu a cena com algo mais profundo que aprovação — algo que Natália sentiu antes mesmo de compreender. Não era inadequado, nem invasivo, mas era real. Era um interesse silencioso, inesperado, que ele tentou esconder quando a filha o chamou. Ele se aproximou para pegar a menininha. Seus dedos roçaram os de Natália ao segurá-la, e o toque leve pareceu ficar no ar, preso ali entre eles. — Obrigado, Natália — disse ele, com a voz baixa demais para soar apenas educada. — Seja bem-vinda à nossa família. O último olhar que lançou antes de sair quase a fez prender a respiração. E então, os dois logo ficaram sozinhos. Carlos Eduardo deu um passo à frente. — Então... Deu certo? — perguntou, com aquele sorriso capaz de desarmar qualquer pessoa. Natália mordeu o lábio, com um sorriso contido nos lábios. — Deu. — Eu disse que ia dar — ele respondeu, aproximando-se mais. Carlos Eduardo segurou a mão de Natália e a trouxe lentamente para junto dele. Ficaram tão próximos que podiam sentir a respiração um do outro, o calor do momento, a certeza que nascia ali. Natália ergueu o rosto. Ele inclinou o dele. E o mundo ficou pequeno demais. O primeiro beijo aconteceu como um encontro inevitável entre dois caminhos que já vinham se buscando. Os lábios encostaram primeiro com suavidade, como se perguntassem “posso?”. Natália respondeu aproximando-se mais um pouco. Ele deslizou a mão pela cintura dela, puxando-a com cuidado — um gesto firme, mas respeitoso. O beijo aprofundou-se, romântico, quente, cheio daquela emoção adolescente. Ela sentiu o peito acelerar. Ele sentiu o chão desaparecer. Não havia pressa. Era apenas o primeiro beijo deles e já parecia o início de algo grande. Quando se afastaram, ainda unidos pela respiração entrecortada, Carlos encostou a testa na dela. — Eu quero muito você — murmurou. Natália sorriu. — Eu também te quero. A casa ficou em silêncio depois do beijo. Um silêncio bom, daqueles que dizem mais do que palavras. Carlos Eduardo ainda segurava a cintura dela com as duas mãos, como se tivesse medo de que ela evaporasse. Natália mantinha os dedos enroscados na nuca dele, o coração batendo tão alto que parecia ecoar na sala inteira. — Acho que a gente acabou de oficializar algo, né? — ele sussurrou, rouco. Ela só conseguiu assentir, o rosto afogueado. Foi quando ouviram o barulho da porta automática abrindo de novo. Eles se afastaram. Carlos Alberto voltou carregando a mochilinha da filha nas costas e a pequena no colo, já trocada com o uniforme da creche-escola: vestidinho xadrez, meias 3/4 e um laçarote vermelho no cabelo. — Esqueci a garrafinha de água dela — explicou ele, a voz tranquila, mas o olhar percorreu Natália de cima a baixo por um segundo a mais do que o necessário. — Já estou de saída. A menininha esticou os bracinhos na direção de Natália assim que a viu. — Táia! Beijinho! — pediu, imperativa. Natália riu, ainda meio tonta do beijo anterior, e se aproximou. Deu um beijo estalado na bochecha da pequena. Carlos Eduardo observava a cena com um sorriso bobo, orgulhoso. Carlos Alberto se agachou para colocar a filha no chão por um instante, enquanto procurava a garrafa na cozinha aberta. A menina correu de volta para Natália e se pendurou na perna dela. — Táia vem comigo na escolinha? — Hoje não, meu amor — Natália respondeu, acariciando o cabelo dela. — Mas amanhã eu vou, tá? A pequena fez biquinho, mas aceitou. Carlos Alberto voltou com a garrafa na mão. Olhou para a filha, depois para Natália. Algo mudou no ar. Um segundo de hesitação quase imperceptível. — Natália — chamou ele, baixo. — Pode vir aqui um instante? Ela obedeceu, sem entender. Ele se abaixou para ficar na altura da filha. — Filha, dá um beijinho de despedida na Natália, vai. A menina deu outro beijo barulhento na bochecha de Natália. Então, Carlos Alberto se ergueu devagar. Muito devagar. Seus olhos encontraram os dela. Não havia mais entrevista, não havia mais chefe e candidata. Havia só um homem e uma mulher, e uma eletricidade que nenhum dos dois esperava. — Bem-vinda de novo — disse ele, a voz grave, quase um sussurro. E, antes que Natália pudesse processar, ele se inclinou. Não foi na bochecha. Foi no canto da boca. Os lábios dele tocaram os dela por um segundo inteiro. Quentes. Firmes. Seguros. Natália congelou. Um arrepio subiu pela espinha, diferente do que sentira com o filho minutos antes. Mais maduro. Mais perigoso. Ele se afastou apenas centímetros, o suficiente para os olhares se cruzarem. Nos olhos dele havia um pedido de desculpas silencioso e, ao mesmo tempo, nenhuma vontade de se desculpar. — Até amanhã, Natália — disse, com um leve sorriso de canto que fez o estômago dela dar um nó. Pegou a filha no colo de novo e saiu em direção à garagem, como se nada tivesse acontecido. A porta automática se fechou. Natália ficou parada no meio da sala, o coração disparado em dois ritmos diferentes. Carlos Eduardo, se aproximou curioso. — O que meu pai estava cochichando com você? Natália virou para ele, o rosto ainda quente, os lábios formigando de dois beijos completamente distintos. — Eu começo amanhã! — respondeu, a voz trêmula, sem saber se ria ou se entrava em pânico. Carlos Eduardo deu um passo à frente, confuso, mas antes que pudesse perguntar mais, ela segurou o rosto dele e o beijou de novo — forte, quase desesperada, como quem tenta apagar o gosto do outro com o dele. Mas o gosto já estava lá. Dois homens. Dois beijos.






