Mundo ficciónIniciar sesiónJuliana Bezerra
Eu encarei a tela do computador por longos segundos antes de conseguir respirar fundo e terminar de digitar minha demissão. Minhas mãos tremiam, meu peito ardia como se tivesse um peso preso ali dentro, mas eu sabia que não podia mais adiar. Era isso ou continuar vivendo uma vida que já não era minha.
Quando cliquei em “enviar”, senti minhas pernas fracas. Era real. Eu estava indo embora. Não apenas do emprego… mas de tudo.
Fechei o computador, peguei minha bolsa e comecei a organizar minhas coisas com a pressa desesperada de quem precisa fugir, mas tentando parecer calma, como se cada movimento já estivesse ensaiado há semanas. Na verdade, estava. Eu planejava cada passo antes de dormir, como uma menina tentando achar uma saída num labirinto.
Enquanto separava meus documentos, carteira, e a chave reserva que ele nunca descobriu, aquele arrependimento antigo voltou com força. O mesmo que me acompanha desde o dia em que resolvi dar uma chance para ele.
Eu devia ter ido embora naquele pagode. Ele chegou todo engraçadinho, sorrindo como se o mundo fosse dele, me chamando de princesa… e eu, tão carente, tão sozinha naquela cidade nova, caí. Meus pais moravam em outra cidade, meus irmãos seguiam suas vidas, e eu só queria me sentir vista por alguém.
Eu tinha acabado de me formar em Pedagogia, cheia de sonhos de ajudar crianças especiais, estudando ABA, me dedicando ao atendimento de pequenos com autismo e Down. Tudo o que eu queria era construir uma vida linda aqui.
E, no começo, ele parecia ser parte desse sonho.
Mas não demorou para virar pesadelo.
Fechei o zíper da bolsa com força, respirei fundo e olhei ao redor. Aquele apartamento nunca foi um lar. Nunca foi meu. E agora eu precisava sair dele em silêncio, com cuidado, com estratégia.
Porque se ele descobrisse… eu nem queria imaginar.
Hoje era o dia.
Eu ia embora. Por mim.Depois que terminei de falar com a Karina, eu fiquei parada no meio da sala, com o celular ainda na mão, tentando controlar a respiração. As palavras dela rodavam na minha cabeça como um sussurro de coragem:
"Você vai sair daí, Ju. Hoje começa a mudança."
A casa estava silenciosa. André tinha saído poucos minutos antes, batendo a porta com força, como sempre fazia quando queria me lembrar de quem “mandava”.
Mas desta vez… eu não estava tão fraca quanto ele imaginava.
Aproveitei que ele tinha acabado de ir trabalhar e comecei a andar pela casa rápido, como se o tempo estivesse contra mim. Lavei o rosto, escondi o hematoma com a pouca maquiagem que tinha e prendi o cabelo.
Eu precisava ir à escola.
Precisava pedir demissão antes que ele notasse qualquer mudança na minha rotina.Peguei a chave reserva aquela que eu escondia dentro da capa do livro de pedagogia. Ele nunca tocou naquele livro. Nunca teve interesse em nada que fosse meu.
Quando saí, o ar frio da manhã bateu no meu rosto e eu senti uma espécie de alívio estranho. Eu estava fora. Ele não podia me impedir. Pelo menos não naquele momento.
Cheguei à escola tentando manter a postura, mas a dor latejando no meu rosto me lembrava do motivo de eu estar ali. A diretora, Dona Márcia, me viu no corredor e imediatamente caminhou até mim.
— Juliana? ela franziu o cenho, os olhos indo direto para o meu rosto. — O que aconteceu com você?
Meu coração acelerou. Eu não queria explicar. Não queria dizer o nome dele.
Respirei fundo.— Diretora… eu vim pedir minha demissão.
Ela piscou algumas vezes, surpresa.
— Demissão? Agora? deu um passo mais perto, sua expressão aumentando a preocupação. — Isso tem a ver com esse machucado?
Minha garganta fechou. Eu apenas balancei a cabeça, tentando evitar o choro.
— Eu vou viajar respondi, com a voz mais firme que consegui. — Preciso resolver umas coisas e… não sei quando volto.
Ela soltou um suspiro pesado, como quem entende mais do que eu disse.
— Juliana, eu vou te demitir para você não perder seus direitos. Eu sei que você nunca faria isso se não estivesse precisando muito.
Senti meus olhos arderem.
— Obrigada… de verdade.
Ela segurou minhas mãos, num gesto maternal.
— Pode contar comigo sempre. E se um dia quiser voltar… as portas estarão abertas. Para você, sempre.
Essas palavras me desmontaram por dentro.
Eu senti que alguém finalmente me via.Saí da sala com a papelada pronta e com um nó na garganta.
Foi ali, naquele corredor onde eu dei tantas aulas com amor, que eu percebi:
Eu tinha começado a virar a página.Agora eu precisava pensar no mais difícil:
como preparar minha fuga sem que André percebesse.O resto do dia passou arrastado, como se cada minuto tivesse o peso de uma pedra. Quando voltei para casa, ainda era começo da tarde. O silêncio me fez tremer. Qualquer barulho parecia um aviso, um estalo, um presságio do que viria mais tarde.
Eu escondi os documentos dentro do bolso interno da mochila, deixei tudo organizado ao alcance da mão — mas sem parecer bagunçado demais. Se ele desconfiasse de qualquer coisa… não haveria segunda chance.
O tempo andou devagar até o entardecer.
Karina me mandou a foto da passagem no celular:"02h45. Você embarca. Estou te esperando, Ju."
Meu estômago se revirou.
Era real. Eu ia fugir.Mas antes… eu precisava sobreviver até André apagar.
Quando o relógio marcou quase 21h, ouvi o barulho da chave girando na porta. Meu corpo inteiro congelou.
Ele entrou tropeçando, com a camisa amassada, cheiro de cerveja e suor inundando o ambiente.
— Juliiiaaa… ele arrastou o nome, jogando a carteira no sofá. — Até que enfim alguém nessa casa pra me receber, né?
Fiquei parada na cozinha, tentando não provocar nada.
— Boa noite, André…
Ele riu, aquele riso que sempre vinha antes de algo pior.
— Boa noite é o caramba. Eu tô com fome. Cadê minha janta?
Engoli o seco.
— Eu… já vou preparar.
— Já deveria estar pronta! ele gritou, batendo a porta do armário com força. — Caramba, Juliana! Pra quê eu tenho mulher?
Eu fechei os olhos por um segundo.
Respira. Não responde. Não confronta.Preparei a janta do jeito mais rápido que pude.
Ele comeu reclamando de absolutamente tudo: do tempero, da textura, da minha cara.— E esse olho roxo aí? Tá feio isso, hein. Ele sorriu, maldoso. — Quem mandou me desafiar logo cedo?
Meu coração apertou. Mas eu não chorei.
Não na frente dele.— Acabou? perguntei baixinho.
— Acabou nada. Ele se serviu mais cerveja. — Trouxe umas latinhas. Hoje eu vou beber até cair.
Ótimo.
Era exatamente o que eu precisava.Ele passou a noite inteira entre a sala e a cozinha, falando sozinho, assistindo televisão com o volume no máximo, xingando os jogadores do time, derrubando coisas no chão.
Às vezes jogava indiretas, às vezes vinha até mim só para me assustar.
— Se um dia você me trair… eu acabo com você. Ele murmurou, aproximando o rosto do meu. — Você é minha. MINHA.
O cheiro de álcool quase me fez vomitar.
Mas eu fiquei firme.
Eu sabia que se reagisse, poderia não sair viva dali.Pouco depois das onze, ele finalmente afundou no sofá, com a lata de cerveja caindo da mão.
Roncava alto, como um animal cansado.Esperei longos minutos.
Dez. Vinte. Trinta.A respiração dele ficou pesada, profunda.
Ele não ia acordar tão cedo.Meu coração disparou.
Era agora.
Caminhei até o quarto em silêncio, peguei a mochila, enfiei dentro dela as últimas roupas, o celular carregado, a passagem impressa que a Karina mandou, os documentos, um pouco de dinheiro.
Quando olhei para a porta da sala, vi André apagado, a boca entreaberta, totalmente vulnerável.
Eu deveria sentir medo.
Mas o que eu senti… foi liberdade.Abri a porta bem devagar, quase sem respirar.
Antes de sair, olhei para trás uma última vez.
Tudo o que eu vivi ali. Toda dor. Todas as noites em que pensei que não sobreviveria.Fechei a porta silenciosamente.
E dei meu primeiro passo para uma nova vida.







