Estava amanhecendo quando estacionei o velho Ford em frente à minha antiga casa. Olhei para a fachada e suspirei, engolindo a vontade de chorar. Fazia oito anos que não via meus pais, claro que sempre falava com eles por telefone, mas nunca mais tinha colocado os pés naquela cidadezinha que considerava amaldiçoada.
Desde que passei pelo portal da cidade, as lembranças me atingiram em cheio, Minha infância que foi muito feliz, a adolescência que foi completamente normal, meu namorado… me perguntei se o Víctor ainda estaria morando ali, achava pouco provável, pois minha mãe me disse que a maioria dos jovens se formava e ia embora para a cidade grande, em busca de melhores condições. Nunca tive coragem de perguntar sobre ele, queria abafar o que sentia, então não era bom ficar remexendo no passado.
As casas da vizinhança continuavam iguais, mesmas cores, mesmas cercas pintadas de branco… inclusive a casa dos pais dele… Fomos vizinhos desde que nascemos, brincávamos juntos na rua, estudamos na mesma sala de aula, eu não lembrava da minha vida sem ele, até aquele dia fatídico, em que eu simplesmente fui embora sem pensar duas vezes. Depois dali, foi como se a minha vida perdesse a cor. Casei com um homem que a princípio se mostrou um príncipe, mas logo virou sapo. Aí veio meu filho Tiago, e minha vida voltou a ter algum sentido.
— Mamãe, nós chegamos? — A voz do meu garoto me tirou do transe em que eu me encontrava.
— Sim, meu amor, nós chegamos! — falei sorrindo.
Desci do carro e abri a porta para ele, mas antes de entrar, fechei os olhos e respirei fundo o ar gelado da cidadezinha que estava começando a acordar. Se eu conhecia meus pais, estavam na cozinha tomando o café da manhã, olhei para o chaminé e meu palpite foi confirmado pela fumaça que saía lenta, misturando-se ao ar úmido que anunciava que logo a chuva começaria.
Sempre foi assim, desde que eu me lembrava, acordavam muito cedo, faziam fogo no fogão a lenha e passavam o café, eu normalmente acordava com o cheirinho do café e a casa aquecida. Sorri levemente, essas lembranças aqueciam o coração. Afinal, voltar não estava sendo tão ruim como eu imaginava.
Peguei meu filho pela mão e subi os poucos degraus que levavam até a porta. O jardim estava muito bonito, meu pai sempre foi muito caprichoso com as flores, pois ele sabia que minha mãe gostava.
Bati na porta levemente e esperei. Eles não sabiam que estávamos chegando, eu nunca contei para nenhum dos dois o que passava com meu ex-marido violento. Provavelmente ficariam muito surpresos.
Quando minha mãe, Dona Palmira, abriu a porta, houve um grande “Oh!” de surpresa. Ela imediatamente se jogou sobre mim, me abraçando e beijando muito. Com meu pai, Seu Sebastião, foi a mesma coisa, ambos sempre foram muito carinhosos e sempre foram de demonstrar o afeto.
Apresentei o Tiago a eles, pois só se conheciam pelas chamadas de vídeo. Foi uma festa, logo estávamos dentro da casa, conversando animadamente.
— Minha filha, você ainda tem o Ford velho que eu lhe dei, achei que aquele calhambeque não duraria nem seis meses! — meu pai falou, olhando pela janela.
— É claro que tenho, eu amo aquele carro, mandei reformar ele todo, deixando o máximo da sua originalidade, nunca vou me desfazer dele!
— Lembro como se fosse hoje, do dia que fomos escolher o carro, e você cismou com aquela lata velha já na chegada, fiz de tudo para lhe dissuadir, mas você era muito teimosa!
— E continuo sendo, Seu Sebastião! — falei sorrindo.
— Filha, por quanto tempo vocês pretendem ficar? — minha mãe perguntou, ansiosa. — Tem tanta coisa que temos que lhe contar, espero que não pense em ir embora tão cedo!
— Na verdade, mãe, eu vim para ficar. — falei de uma vez e houve um breve silêncio na cozinha.
— Não diga, minha querida! — mamãe levantou as mãos para o céu. — O bom Deus trouxe nossa filhinha de volta!
— E quando é que o seu marido chega, filha? — meu pai perguntou.
Fiquei tentando achar a melhor forma de falar, mas percebi que não havia um jeito fácil. — Ele não vem… — respondi, soltando o ar devagar.
— Como assim, não entendi, Helena, vocês brigaram? — Minha mãe era contra a separação, sempre falou que casamento era para sempre e que a mulher sábia deve edificar o seu lar. Para ela era fácil falar, já que era casada com um homem incrível que beijava o chão que ela pisava.
Pois bem, eu tentei edificar o meu lar por sete longos anos, apanhando e sendo humilhada de todas as formas, trabalhando de segunda a segunda, enquanto ele gastava todo o nosso dinheiro com amantes e jogos de cassino.
— Nós nos separamos, mãe. O Leonardo já não é mais meu marido.
Vi a confusão em seus rostos e comecei a contar logo tudo o que eu e o Tiago havíamos passado com aquele homem. Quanto mais eu falava, mais meu pai ficava vermelho e lágrimas escorriam dos olhos da minha mãe. Pude ver o choque em seus olhos, a tristeza por não poderem fazer nada enquanto nós sofremos todo tipo de abuso imaginável.
— Me perdoe por não ter te defendido, minha filha! — meu pai murmurou, segurando minhas mãos.
— Pai, vocês não tinham como saber, eu nunca deixei transparecer nada do que acontecia lá, não queria preocupá-los. Agora não quero que se culpem por algo que vocês não tinham como adivinhar!
Conversamos por um longo tempo, tomamos café juntos e então eu pedi para dormir um pouco, pois havíamos passado a noite na estrada.
— Claro, minha querida! O seu quarto continua exatamente como você deixou, ele continua sendo seu! — Dona Palmira falou, com um grande sorriso.
Meu pai me ajudou com as bagagens e as colocou em meu antigo quarto. Quando entrei lá, foi como se uma onda de choque me atingisse, tudo estava realmente como eu havia deixado.
Minha cama branca com dossel rosa, combinando com o guarda-roupas e a cômoda. A escrivaninha cheia de livros e o velho computador onde eu estudava, tudo no seu lugar. As paredes pintadas de um rosa bem clarinho, quase branco. Meu quarto lembrava o de uma princesa, e era como eu me sentia, com todo o carinho que recebia dos meus pais.
Papai largou as bagagens e saiu, depois de me dar um beijo na testa, o Tiago quis ir com o avô, já que havia dormido durante a viagem, no banco de trás.
Depois que fiquei sozinha, andei devagar por todo o quarto, minha mãe tinha mantido tudo impecavelmente limpo, como se esperasse a minha volta repentina. O que provavelmente era certo, já que coração de mãe sente as coisas. Eu era assim com o Tiago.
Eram tantas lembranças! Meu coração batia forte dentro do meu peito, mas quase parou, quando eu cheguei em frente ao mural de fotos sobre a escrivaninha. Era uma bagunça de sentimentos, fotos com as minhas amigas, com meus pais em viagens, e com ele…
Lá estava o Víctor, me olhando com aqueles lindos olhos escuros que pareciam que podiam ver através da gente. Senti um calafrio e me abracei, instintivamente. Me senti de novo como uma adolescente olhando a foto do seu primeiro amor. Passei meu dedo indicador sobre a foto, contornando seu rosto, como se pudesse sentir o calor da sua pele novamente em meus dedos. Fechei os olhos com a lembrança do dia que aquela foto foi tirada, estávamos na escola, logo após uma apresentação de uma peça teatral, vestidos de Romeu e Julieta.
“Que ironia!” Pensei. Mal nós sabíamos que, assim como os personagens da nossa peça, também não ficaríamos juntos.
Suspirei, limpei a lágrima que havia deslizado sobre a minha bochecha, e continuei o meu tour pelo quarto. Abri o guarda-roupa e constatei que todas as roupas que eu havia deixado ainda estavam ali. Comecei a tirar os cabides, um a um, observando cada peça, todas elas me remetiam a lembranças do passado, de dias que eu as havia usado, de pessoas, de sorrisos, eu apenas ia jogando tudo no chão, até que em um ataque de fúria, comecei arremessar aos montes, com raiva, as lágrimas descendo em abundância pelo meu rosto, toda a frustração de uma vida infeliz vindo à tona. No fim, o armário estava vazio e eu estava sentada no chão, no meio das roupas, chorando copiosamente.
Deitei entre as peças e ali fiquei, me permiti chorar o quanto fosse preciso, e foi assim que adormeci, deitada sobre o meu passado, com o coração em pedaços…