Acordei com o corpo dolorido por ter dormido no chão, olhei o relógio e eram onze horas da manhã, senti o cheiro do tempero da minha mãe e meu estômago roncou imediatamente. Levantei do chão e empilhei as roupas em um canto, depois acharia um destino para elas. Senti a cabeça latejar, era sempre assim quando eu chorava, procurei um remédio na minha bolsa e engoli com a água da garrafa que eu tinha usado durante a viagem. Depois, tirei algumas roupas da mala e uma toalha de banho e fui para o banheiro.
Ali também continuava tudo igual, até mesmo a escova de dentes que eu usava ainda estava no pote. Senti uma tristeza profunda pela minha mãe, quando percebi que ela não tivera coragem de se desfazer de nada. Para eles, foi como perder uma filha, não houve uma despedida, uma promessa de retorno, nada… apenas um bilhete sobre a mesa e oito anos de ausência.
Joguei a escova no lixo e coloquei outra em seu lugar. Ali começava uma nova etapa da minha vida. Arrumei meus cosméticos no lugar dos antigos e coloquei a banheira para encher.
Depois, deitei na água morna e me permiti relaxar. A viagem foi longa, cansativa e monótona. Meu filho era dorminhoco desde pequeno e durante a viagem não foi diferente, então, não tive muito com quem conversar.
Depois do banho demorado, desci para almoçar, meu pai estava acabando de pôr a mesa com a ajuda do Tiago, muito empolgado por estar com os avós. Fiquei um tempo os observando, até que meu pai me viu.
— Olha só a bela adormecida! — ele exclamou, sorrindo. — Venha Nena, sente-se e almoce conosco!
Sorri ao ouvi-lo me chamar de Nena novamente, fazia desde que eu tinha dezoito anos que ninguém me chamava assim. Era um apelido com gosto de casa. Aquecia o coração.
Almoçamos conversando animadamente e eu aproveitei para perguntar à minha mãe onde poderia doar as roupas antigas.
Ela baixou a cabeça e murmurou um pedido de desculpas por não ter tirado as coisas do quarto.
— Mãe! Você não tem que se desculpar! — segurei sua mão sobre a mesa. — Eu entendo totalmente! Só vou me desfazer das roupas porque já não fazem mais meu estilo.
— Bem, nós podemos levar até a paróquia, lá eles fazem doações à pessoas carentes.
— Então está combinado, à tarde vou fazer isso.
Depois do almoço voltei para o quarto e observei a bagunça, me envergonhei levemente pelo surto que tive, mas não me recriminei, eu já tinha aguentado muito calada.
Dobrei as roupas e as coloquei em sacolas, evitando olhar muito para cada uma delas, para que as lembranças não voltassem e minha mãe me visse chorando.
Carregamos tudo no meu carro e saímos rumo à igreja. Andar por aquelas ruas fazia meu coração bater descompassado. Minha mãe percebeu o meu desconforto.
— São muitas lembranças, minha filha, eu sei.
— São muitos arrependimentos, mãe…
Estacionei em frente à igreja e quando desci do carro, já dei de cara com uma conhecida. Dona Carmen, uma das nossas vizinhas, carola de carteirinha, ia todos os dias à igreja.
— Ora veja! Se não é Helena que voltou! — A velha senhora veio até mim de braços abertos, eu gostava dela, apesar de ser um tanto fuxiqueira.
— Boa tarde, Dona Carmen, sim, estou de volta. — sorri para a velhinha e a abracei.
Nesse momento meu filho saiu do carro e a velhinha soltou um “oh!” de surpresa.
— E quem é esse menino lindo? Não vai me dizer que é seu neto, Dona Palmira!
— Sim, esse é o Tiago, meu netinho! — Minha mãe veio até nós e passou o braço sobre os ombros do meu filho.
— Ah que criança adorável! — ela olhou para dentro do carro. — Mas onde está o pai?
Minha mãe revirou os olhos.
— O pai não pôde vir, dona Carmen, a Helena veio com o filho passar umas férias.
— Oh! Uma pena, não é mesmo? Eu estava ansiosa para conhecê-lo!
— Quem sabe numa próxima vez… — Mamãe cortou a velha senhora e rumamos para dentro da igreja. — Agora temos que ir, estamos com pressa.
Dona Carmen ainda ficou parada nos olhando com aqueles olhinhos pequenos, que colhiam todas as informações possíveis, para passar adiante.
Eu não gostei de ver que a minha mãe não quis contar que eu tinha voltado para ficar, percebi que ela se envergonhava de ter uma filha separada em casa. Mas ela não poderia esconder isso por muito tempo, já que logo eu teria que matricular o Tiago na escola e procurar um emprego.
— Mãe, por que você não contou para a Dona Carmen que eu vim para ficar? — Cochichei enquanto fazia o sinal da cruz, na porta da igreja.
— Ela é uma velha fofoqueira, minha filha, logo a cidade toda estaria sabendo.
— E eu posso saber qual é o problema? Está com vergonha da sua filha?
— Não, Helena, só não quero seu nome na boca de gente venenosa.
Me calei, eu sabia que era uma desculpa que a Dona Palmira tinha arranjado. Percebi que logo teria que procurar um lugar para mim e meu filho, até porque não queria atrapalhar a rotina dos meus pais, que já estavam idosos e mereciam sossego. Mais tarde eu conversaria com eles sobre isso.
Entregamos as doações para outra senhora que ficou fazendo muitas perguntas sobre a minha vida. Eu não gostava daquilo, mas entendia que a cidade era muito pequena e todos se conheciam, era natural que tivessem curiosidade, mas o que mais me incomodou, foi que a minha mãe novamente não contou que eu havia voltado definitivamente.
Depois da igreja passamos no mercado e lá também encontramos vários conhecidos. Para todos a minha mãe contava a mesma mentira e eu já estava começando a perder a paciência.
Quando estávamos passando pela praça, meu filho viu um sorveteiro.
— Mamãe, podemos tomar um sorvete? — Ele perguntou todo contente.
— Claro, meu bem… — Estacionei e descemos, resolvemos que íamos todos tomar sorvete.
Saímos andando pela praça enquanto nos deliciávamos com o doce, conversando animadamente, eu comentava com minha mãe que nada havia mudado, quando meus olhos encontraram os dele…
Parado ao lado da caminhonete que eu conhecia bem, Víctor olhou diretamente para mim, sua expressão foi de total surpresa e pude ver que ele falou meu nome.
— Helena… — Nós estávamos longe, mas foi nítido o movimento dos seus lábios.
Paralisei no meio da praça, ele estava exatamente igual, mesmo corpo, mesmo corte de cabelo, mesmo olhar, parecia que não tinha envelhecido nenhum dia. Meu coração acelerou e eu parei de ouvir os sons ao meu redor.
— Víctor… — murmurei.
Nesse momento, uma mulher saiu da caminhonete e pegou em sua mão. Senti uma onda de enjôo e tive que me segurar para não vomitar ali mesmo. A mulher que estava com ele era Laura, a causadora de toda a desgraça da minha vida!