O herdeiro e a sombra

Capítulo 2

O Herdeiro e a Sombra

Rocco Mancini

A fumaça do meu charuto preenchia o escritório, cinza e densa como a névoa sobre o Tâmisa. Meus olhos estavam fixos na metrópole que se estendia abaixo, um emaranhado de luzes e sombras, cada uma delas contendo um pedaço do império que meu pai estava prestes a me entregar. A cerimônia de passagem de poder estava a menos de uma semana, e cada fibra do meu ser estava sintonizada para assumir o manto, o peso, a coroa espinhosa de Dom Mancini.

A voz de Matteo, meu braço direito, quebrou o silêncio pesado.

- Rocco. - Ele começou, e o tom estava errado. Havia uma hesitação, uma cautela que não combinava com o homem de ferro que ele era. - Tenho notícias.

Eu virei lentamente, a fumaça se dissipando ao meu redor.

-Diga. - Meu único interesse era a eficiência.

Matteo engoliu em seco, um sinal de mau presságio.

- É sobre... uma situação delicada. - Ele hesitou novamente, algo que nunca fazia. - Lembram-se de Salomé?

O nome me atingiu como um tiro no escuro. Salomé. Nova York. Uma parte da minha vida que eu tinha fechado a sete chaves, uma época de testes, de construção, onde eu me movia pelas sombras de uma cidade que nunca dormia. Salomé era uma nota de rodapé, uma distração conveniente.

- Salomé? - Eu repeti, o nome soando estranho em meus lábios. - Qual Salomé? Tive algumas parceiras sexuais em Nova York. Seja específico, Matteo. Não tenho tempo para adivinhações.

Ele pigarreou, ajustando a gravata.

- A garçonete do ‘The Scarlet Sparrow’. A que tinha um cabelo ruivo e uma tatuagem de borboleta no ombro.

A imagem dela surgiu na minha mente, vívida e irritante. Uma mulher esguia, com olhos verdes penetrantes e um sorriso que era sedutor demais para ser inocente, mas que nunca me questionou. Ela era obediente, nunca fazia perguntas. Uma tábua de salvação em meio ao caos da minha vida na época.

- Sim, eu me lembro dela. O que tem ela? Está causando problemas? Pensei que estivesse longe de Nova York. - Eu puxei meu charuto para fora da boca e o apertei entre os dedos, a paciência diminuindo.

Matteo deu mais um passo à frente, com as mãos apertadas atrás das costas.

- Salomé faleceu, Rocco. Overdose.

A notícia não me atingiu como deveria. Salomé era um fantasma do passado, uma memória.

- Uma pena. - Eu disse, sem emoção. - Ela era... útil. Mas isso não é um assunto para mim, Matteo. O que isso tem a ver com a preparação para a cerimônia?

Matteo me olha com cautela.

- Tem tudo a ver, Rocco. - Ele respondeu, e a seriedade em sua voz finalmente me fez prestar atenção. - Salomé tinha um filho. Um bebê. Menino.

As palavras pairaram no ar, e o peso delas caiu sobre mim como uma laje de pedra.

- Um... filho? - Eu mal consegui formar a palavra. - Você está insinuando que...?

Matteo assentiu, com os olhos baixos.

- O bebê nasceu há dois meses. Os registros da mãe, a data, a época em que ela estava com você exclusivamente... é seu, Rocco. Não há dúvida.

Meu sangue gelou. Um filho. Um filho. Aquelas palavras ressoavam no meu crânio, uma batida ensurdecedora que ameaçava destruir a fachada de Dom Mancini que eu tinha construído com tanto esmero.

- Impossível. - Eu sibilei. - Eu sempre fui cuidadoso. Eu... não.

- Ela escondeu a gravidez. Se afastou da família e dos amigos durante o período. Ninguém soube até o nascimento. E depois, ela parece ter tentado cuidar da criança sozinha antes de... antes do fim. - Matteo parecia quase envergonhado ao dar a notícia. - O bebê está com uma jovem que Salomé contratou para cuidar dele. Uma vizinha que a ajudava.

Eu me virei novamente para a janela, mas a vista da cidade agora parecia sufocante. A coroa espinhosa parecia apertar minha cabeça com a força de um torno.

Um filho. Um herdeiro bastardo.

O momento. Meu pai, Dom Francesco, estava fraco, mas ainda um leão, pronto para me passar o centro de tudo. Meu primo, Marco, um abutre impaciente, estava à espreita, buscando qualquer fraqueza para me derrubar. Ele tinha a ambição de um demônio e a lealdade de um camaleão. A mera sugestão de um escândalo, de um filho fora do casamento, seria a arma que ele precisava para destruir tudo. A família Mancini valorizava a linhagem, a pureza do nome e a estabilidade. Um filho ilegítimo, especialmente agora, poderia ser visto como uma mancha, uma fraqueza de caráter, uma irresponsabilidade que me desqualificaria para liderar.

Meu pai era um homem de princípios rígidos, à moda antiga. Embora ele tivesse seus próprios segredos, a imagem pública da família era primordial. Isso poderia ser o suficiente para ele questionar minha capacidade de governar, de manter a ordem. E Marco... Marco faria questão de que cada um dos capos soubesse dos detalhes sórdidos.

Eu girei em meus calcanhares, a fúria queimando em minhas veias.

- Essa mulher... ela era apenas uma diversão, Matteo! Uma parceira sexual, nada mais! Eu não tinha ilusões sobre ela, e ela sabia disso! Ela era obediente, sim, porque nunca fazia perguntas, nunca me exigia nada. Por que ela faria isso agora? Por que ela teria um filho meu e o esconderia?

Matteo permaneceu calado, me observando com uma paciência silenciosa que só um homem que me conhecia há anos poderia ter.

- Isso não pode ser real. - Eu murmurei, passando as mãos pelos fios dos meus cabelo. O controle que eu sempre exercia, a imagem inabalável que eu projetava, estava ameaçada. Tudo o que eu havia construído, cada passo calculado, cada sacrifício, poderia desmoronar por causa de um descuido do passado.

- Rocco, precisamos agir rápido. - Matteo disse, sua voz firme agora. - Essa informação... se cair nas mãos erradas, pode ser catastrófico para a sua posição. Especialmente agora.

Eu fechei os olhos, revendo os últimos meses. A tensão crescente na família, os movimentos de Marco para angariar apoio, os sussurros nos corredores. O anúncio de um possível noivado com Leila, uma aliança estratégica, a garantia de uma linhagem ‘limpa’ e poderosa. E então, um bebê. Uma criança que havia entrado na minha vida como um furacão, virando meu mundo de cabeça para baixo, questionando cada uma das minhas crenças, me levando ao limite de uma forma que ninguém jamais havia feito. Essa era a minha fraqueza oculta, porque eu não podia deixar essa notícia cair nas mãos erradas.

E agora, isso. Um filho. Um filho com uma mulher que nunca havia significado nada, mas que agora, mesmo morta, poderia me destruir.

A raiva borbulhava dentro de mim, uma fúria selvagem e incontrolável. Fúria por Salomé ter sido tão irresponsável, por ter escondido algo de tamanha magnitude, por ter morrido e deixado esse legado explosivo. Fúria por mim mesmo, por ter sido descuidado, por ter permitido uma única brecha na minha armadura.

- Onde está o bebê? - Eu exigi, minha voz baixa e fria.

- Em um apartamento seguro, em Nova York. Enzo ouviu os sussurros e agiu. A criança está com alguém discreta, uma jovem que tem a mãe doente. Está na fila para receber um fígado.

- Tragam-no para cá. - Eu ordenei, cada palavra, um comando inabalável. - Imediatamente. Hoje. Agora.

Matteo assentiu, já pegando o telefone.

- E a mulher, Scarlett? O que fazemos com ela?

Eu parei, pensando. Ninguém poderia saber. Ninguém. Nem mesmo ela. Ela tinha visto o bebê, sabia quem era a mãe. Ela era uma testemunha.

- Tragam-na junto. - Eu decidi, minha voz mais fria do que o gelo. - Ninguém pode saber de nada. Ninguém pode ligar este bebê a Salomé, ou a mim. Ela não pode ser deixada para trás para falar. Dê a ela uma oferta generosa. Muito generosa. Diga que ela trabalhará para mim, cuidando do bebê. Aqui, sob meu teto. Ela não terá escolha. E se recusar... - Eu rio sem humor. - Não haverá recusa.

Matteo olhou para mim por um momento, seu olhar transmitindo uma compreensão silenciosa do que eu estava pedindo, do que eu estava disposto a fazer para proteger meu império.

- Entendido, Dom. Será feito. Ele discou um número e começou a dar instruções em voz baixa, as palavras codificadas, mas o significado claro.

Eu me virei para a janela novamente, a cidade pulsando abaixo. Um filho. Um bastardo. Um segredo. Um novo problema que eu não havia previsto, uma complicação que ameaçava meu reinado antes mesmo que ele começasse. Eu tinha que lidar com isso. Tinha que controlar isso. Tinha que fazer com que essa criança, essa prova tangível do meu passado descuidado, se tornasse invisível, uma sombra que nunca ameaçaria a luz do meu poder.

A coroa espinhosa estava pesando sobre minha cabeça, mas eu não cederia. Eu protegeria meu lugar, meu nome, minha família, custasse o que custasse. E que os deuses tivessem piedade de quem ousasse se interpor no meu caminho. Meu pai havia me ensinado que a fraqueza era a morte. E um filho ilegítimo, se não fosse controlado, era a fraqueza em sua forma mais destrutiva.

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