O primeiro dia na Universidade de Artes de Bangkok parecia uma montagem de filme: jardins meticulosamente cuidados, esculturas modernas ao lado de templos tradicionais, e estudantes vestindo uniformes impecáveis misturados a outros com estilo ousado, quase rebelde. Bella sentia como se estivesse em dois mundos ao mesmo tempo — o antigo e o novo, a tradição e a ousadia, em um contraste que a deixava ao mesmo tempo fascinada e um pouco perdida.
Ela prendeu o cabelo em um coque alto, tentando domar os fios rebeldes que insistiam em escapar, vestiu sua camisa branca do uniforme com um jeans de cintura alta — uma pequena rebeldia permitida — e colocou sua melhor tentativa de confiança no rosto. Por dentro, sentia o coração disparado. Tudo era novo. O idioma, o clima, os rostos, os sons. Mas ela estava ali, de corpo e alma. Era o começo de uma nova vida.
Ao entrar na sala, todos a encararam por alguns segundos. Um daqueles momentos de silêncio desconfortável, onde até o ranger das cadeiras parecia amplificado. Ser a “nova aluna estrangeira” nunca passava despercebido, ainda mais em um lugar tão marcado pela coletividade como a Tailândia. Ela respirou fundo e seguiu adiante.
— Você deve ser Bella, certo? — perguntou uma voz doce atrás dela, com um leve sotaque ao pronunciar seu nome.
Virando-se, deu de cara com uma garota de pele clara, olhos puxados e um sorriso gentil, quase tímido. Ela usava o uniforme tradicional da universidade, mas havia personalizado os punhos da camisa com desenhos delicados de flores, feitos à mão.
— Sim, sou eu — respondeu Bella, aliviada por ver um rosto amigável.
— Sou Sinn. Sou da sua turma. A coordenadora pediu pra eu te ajudar nos primeiros dias — disse, fazendo sinal para ela se sentar ao seu lado.
Durante a aula, enquanto o professor falava sobre estética contemporânea no Sudeste Asiático, Sinn sussurrava explicações rápidas: quem eram os professores mais exigentes, quais matérias exigiam mais atenção, e também os lugares da universidade que poucos mencionavam nos tours oficiais. Havia jardins escondidos, passagens entre prédios ligadas por corredores artísticos, e um certo estacionamento nos fundos que parecia mais perigoso do que misterioso.
— Aquele é onde acontecem as “festinhas”, sabe? — disse Sinn com um sorriso cúmplice. — Não são autorizadas, mas todo mundo finge que não sabe. Se quiser paz, é bom evitar.
Bella sorriu, intrigada com a dualidade daquele lugar. Regras rígidas convivendo com rebeldias discretas. Ela já começava a perceber que Bangkok não era apenas exótica — era cheia de camadas.
Nos intervalos, Sinn mostrou mais do campus: as salas de ensaio com instrumentos tradicionais, os ateliês onde telas inacabadas ganhavam vida, e até mesmo a cantina com cheiros hipnotizantes de comida tailandesa, cheios de temperos que Bella ainda tentava identificar. Ela provou um curry suave e um doce feito de arroz glutinoso com manga, sorrindo diante da explosão de sabores.
— Você vai se acostumar. Bangkok tem um jeito único de te envolver — disse Sinn, com os olhos brilhando de empolgação.
Bella queria acreditar naquilo. Queria sentir que aquele novo mundo poderia realmente se tornar um lar.
Sinn olhou em volta antes de se inclinar levemente para Bella e sussurrar como quem conta um segredo proibido:
— E tem o Pravat.
Bella franziu o cenho. O nome não lhe era estranho. Aliás…
— Se você encontrar com ele, finja que não viu — completou Sinn, abaixando a voz.
— Por quê? — perguntou Bella, curiosa.
— Porque ele é problema. Literalmente. Rico, arrogante, vive quebrando regras. Já foi suspenso duas vezes e só não foi expulso porque o pai dele é um dos principais doadores da universidade. — Ela olhou ao redor mais uma vez, como se temesse que o próprio Pravat estivesse por perto.
Bella sentiu o nome ecoar dentro da cabeça como um alerta.
— Pravat? Alto, tatuado… anda de moto?
Sinn arregalou os olhos, surpresa.
— Você já encontrou com ele?
Bella respirou fundo, lembrando da noite anterior. Lembrando dos faróis da moto se aproximando, da freada brusca, do coração na garganta.
— Quase fui atropelada ontem. Ele me chamou de “sonhadora distraída”.
Sinn soltou uma risadinha nervosa, com os olhos brilhando de incredulidade.
— Então você conheceu o lado gentil dele.
Gentil? Aquilo? Bella quase protestou em voz alta. Mas ao mesmo tempo, havia algo estranho naquela lembrança. Algo que ela não sabia nomear. Talvez fosse o tom da voz dele, ou a forma como ele a olhou, como se… a enxergasse de verdade.
Durante o resto da manhã, mesmo enquanto Sinn falava animadamente sobre os clubes estudantis — dança tradicional, pintura com tinta natural, performance experimental — Bella não conseguia tirar da cabeça aquele olhar arrogante e a forma como Pravat parecia dominar o espaço só com a presença.
Algo nela odiava isso.
Outra parte… queria entender.
Depois das aulas, Sinn a levou até a biblioteca. Um prédio silencioso, com paredes de madeira escura e janelas amplas que deixavam a luz do sol entrar em feixes dourados. Ali dentro, o tempo parecia desacelerar. Bella caminhou entre as estantes como quem passeia por um templo. Os livros de arte, filosofia oriental e história tailandesa a encantavam.
— Aqui é meu lugar preferido — sussurrou Sinn. — Quando tudo fica demais, venho pra cá. Os livros me escutam sem fazer perguntas.
Bella sorriu. Entendia bem o sentimento.
Depois de se despedir, seguiu sozinha até o alojamento. Os corredores estavam mais vazios, o campus banhado pela luz laranja do entardecer. Passou por um grupo de estudantes sentados na grama tocando instrumentos, por um mural de avisos coberto com convites para eventos culturais, e por um cachorro dormindo na sombra de uma árvore — parecia um espírito antigo descansando sob o calor do dia.
No fim da tarde, quando pensava que finalmente teria um momento de paz, ouviu, ao longe, o ronco familiar de um motor. Seus dedos congelaram sobre o zíper da mochila. Ela virou o rosto lentamente, como se já soubesse o que encontraria.
No fundo do pátio, uma moto preta reluzia sob o sol. Encostado nela, com uma garrafa d’água na mão e um olhar preguiçoso, estava ele.
Pravat.
Os olhos se encontraram por um segundo. Um olhar direto, que não piscava. Um olhar que a prendia, como se ele estivesse analisando cada centímetro da sua alma. E então, ele sorriu. Um meio sorriso torto, debochado, como se soubesse de algo que ela ainda não.
Bella desviou o olhar imediatamente, sentindo as bochechas queimarem. Fechou a mochila com força e saiu dali com passos firmes, tentando parecer inabalável.
Mas por dentro, seu estômago estava em guerra.
Ela havia vindo para Bangkok para fugir do passado. Para começar de novo, longe de tudo o que a machucava.
Mas, naquele instante, enquanto o ronco da moto se apagava aos poucos atrás dela, Bella teve a sensação de que o verdadeiro perigo ainda estava por vir.
E ele tinha nome.
Pravat.
Naquela noite, a chuva caiu com força sobre os telhados antigos e modernos da cidade. Bella, sentada em sua cama estreita no alojamento, observava os pingos escorrerem pela vidraça como se fossem palavras indecifráveis. Bangkok parecia sussurrar segredos que ela ainda não estava pronta para entender.
Pegou seu diário, presente da avó antes da viagem, e escreveu:
"Hoje conheci Bangkok. Hoje conheci Sinn. Hoje… vi de novo os olhos dele.
Talvez eu esteja mesmo no lugar certo. Ou talvez seja apenas o começo de algo que vai virar meu mundo de cabeça para baixo.
Seja como for, estou pronta."
Do lado de fora, o trovão rugiu.
E Bella fechou os olhos, como quem aceita o desafio.
O convite para a festa veio de surpresa. Sinn apareceu no quarto de Bela sem bater, empurrando a porta com o ombro e um sorriso malicioso nos lábios. Nas mãos, segurava duas camisetas customizadas com glitter, recortes ousados e frases escritas em tailandês que Bela não conseguia entender.— Hoje tem festa de boas-vindas pros intercambistas. É meio que... não-oficial — disse, agitando uma das blusas como se fosse um troféu. — Vai ser no terraço de um prédio velho perto do rio Chao Phraya. A vista é linda e os problemas são garantidos.Bela arqueou uma sobrancelha. Estava sentada na cama, cercada de livros e anotações, tentando se convencer de que ficar em casa era o melhor caminho para se adaptar. Mas a proposta parecia arrancá-la exatamente do que ela mais temia: a inércia.— Não sei se quero confusão… — disse, com um tom mais defensivo do que pretendia.Sinn revirou os olhos e jogou uma das camisetas no colo dela.— É por isso mesmo que você tem que ir — rebateu. — Você veio pra Ban
Na manhã seguinte à festa, Bela acordou com os pés doendo, o rosto ainda aquecido e a cabeça cheia de perguntas.Por que aquele homem a perturbava tanto?Por que aquele olhar parecia carregar mais do que arrogância?E, principalmente: por que ela queria vê-lo de novo?Tentou espantar as perguntas no banho gelado e com goles de chá de jasmim, mas nenhuma das duas coisas foi suficiente. Na aula de Estética Oriental, sentou na primeira fileira, determinada a focar. A professora falava sobre wabi-sabi, a beleza das coisas imperfeitas, incompletas, passageiras. Falava de harmonia, de equilíbrio, de aceitação.Tudo o que Bela não sentia.Sua mente vagava entre lembranças desconexas da noite anterior: o terraço iluminado, o calor da dança, o cheiro de citronela no ar… e o olhar de Pravat, que parecia atravessá-la como uma lâmina afiada.Ao sair da aula, decidiu buscar alívio nos jardins do campus, perto do lago onde flores de lótus flutuavam como promessas de paz. Sentou-se à sombra de uma c
Naquela noite, Bela não conseguia dormir.As imagens da Casa Silken dançavam em sua mente como sombras em seda: os vestidos suspensos como corpos etéreos, o cheiro denso de jasmim que parecia se agarrar aos seus cabelos, os corredores que pareciam mais longos à medida que o silêncio se aprofundava. Mas o que a mantinha acordada era o olhar do pai de Niran — frio como mármore antigo — e, acima de tudo, o toque amargo na voz de Pravat ao falar da mãe.“Isso tudo pode parecer belo por fora, mas está apodrecendo por dentro.”Essas palavras ecoavam como uma oração corrompida, repetindo-se em um ciclo de lembrança e inquietação. Ela se virava na cama, os lençóis embolados ao redor do corpo, tentando afastar aquela sensação sufocante de que havia tocado, sem querer, em uma ferida aberta. Pravat não era só mistério. Ele era dor e raiva cuidadosamente guardadas sob camadas de silêncio.E, paradoxalmente, era isso que mais a atraía nele.Não os olhos escuros ou a postura quase militar. Mas o qu
Bela seguiu sua rotina, como se tudo fosse normal. As aulas, as conversas casuais com amigos, as tardes gastas entre experimentos no laboratório de tingimento, as noites solitárias, e os sorrisos automáticos. Ela estava ali, fisicamente presente, mas sua mente era uma tempestade constante. Cada pensamento parecia girar em torno de uma imagem: Pravat. Seu rosto, seus olhos, sua voz. A maneira como ele olhou para ela naquela noite, como se soubesse algo que ela mesma ainda não conseguia compreender.Mas não era apenas ele. Era tudo o que ele representava. O que ela sentia quando estava perto dele, a tensão no ar, como se o tempo se esticasse e os momentos entre eles se transformassem em algo mais, algo irreversível. E o pior: ela não sabia mais se queria fugir disso.A visita à Casa Silken estava gravada em sua mente, um filme repetido em sua cabeça. O luxo da mansão, os corredores vazios e frios, os segredos que o pai de Niran carregava como se fossem medalhas de honra, mas que, no fun
Bela não dormiu naquela noite.Revivia o beijo em looping. O calor. A tensão. O gosto de urgência. A forma como os dedos de Pravat apertaram sua cintura como se segurassem algo prestes a escapar. Mas, acima de tudo, ela revivia a expressão dele ao se afastar — como se tivesse feito algo imperdoável. Um misto de desejo e arrependimento, como se tivesse quebrado uma promessa que não queria ter feito. Algo que ele não sabia como consertar, mas que já o consumia por dentro.Na manhã seguinte, Bela tentou seguir com a rotina. Aula de composição tradicional, um trabalho em grupo sobre harmonias folclóricas, almoço rápido no campus. Tentou se manter focada. Mas a presença dele rondava tudo — como fumaça que se infiltra pelas frestas. Cada passo, cada palavra dita pelos colegas parecia ser uma sombra distante do que realmente importava. Ela tentava desviar o pensamento, mas era impossível. Pravat estava ali, em cada canto do seu dia, sem estar fisicamente presente.Pravat não apareceu. Nem um
O sol da manhã não era tão quente, mas o peso sobre os ombros de Bela era o mesmo de uma tempestade prestes a cair. Um daqueles temporais que se anunciam em silêncio, mas que você sente no fundo do estômago, como se a pressão do ar fizesse o mundo ao redor se condensar e se tornar mais denso. Ela sabia que algo estava prestes a acontecer, uma mudança que não poderia mais ser evitada, mesmo que tentasse ignorá-la.Ela não sabia o que exatamente a havia levado até aquele ponto. Talvez tivesse sido o beijo. Ou as palavras não ditas logo depois, que se perderam naquelas horas tensas entre eles. Ou talvez fosse o modo como Pravat a fazia sentir — como se estivesse sempre no limite entre o abismo e o voo, com o olhar profundo e a presença avassaladora que ele exalava. Cada vez que ele a tocava, mesmo que fosse com um simples gesto, ela se sentia empurrada para a borda de algo maior, algo arriscado e perigoso.Agora, tudo parecia uma linha tênue entre o que ela queria e o que seria melhor pa
A cidade parecia diferente depois daquele encontro. Os mesmos caminhos que antes pareciam rotineiros agora pulsavam com uma estranha tensão, como se cada pedra do calçamento soubesse de algo que ela ainda não sabia por completo. Cada esquina, cada sombra, cada som — tudo parecia carregar o peso das palavras que ainda ecoavam na cabeça de Bela. As vozes ao seu redor se tornaram sussurros distantes, irrelevantes diante da avalanche de pensamentos que martelavam em sua mente. Ela sabia. Sabia que não podia mais ignorar os riscos, que a linha que separava o cotidiano da tempestade estava cada vez mais tênue.Mas também sabia que, ao lado de Pravat, ela não podia simplesmente se afastar. Não depois de tudo o que tinham vivido, das camadas que haviam se despido um diante do outro, revelando verdades doloridas e desejos irreprimíveis. Algo havia sido despertado — algo que não podia mais ser enterrado sob a desculpa da segurança ou do bom senso. Era mais forte do que ela, mais forte do que o
A semana seguinte foi um turbilhão de emoções e decisões. O que parecia ser uma leve esperança logo se transformava em uma carga de dor, e Bela sentia a pressão crescer a cada dia. As noites tornaram-se longas e insones, e os dias, um misto de expectativa e frustração. Cada segundo parecia carregar o peso de uma decisão não tomada, de palavras que nunca chegavam.Pravat estava diferente, mais distante. Ele tentava manter a fachada, manter a rotina e a compostura, mas o peso de sua família, da história que o aprisionava, parecia finalmente ter vencido qualquer tentativa de se manter próximo a ela. Ele a evitava, sem dizer nada, e Bela sentia um vazio crescente entre eles, uma linha tênue prestes a se romper. O sorriso que antes a fazia esquecer os problemas agora era apenas uma lembrança, e a ausência dele se tornava cada vez mais insuportável.Ela não podia negar que sentia a ausência dele de uma forma quase física. Cada mensagem sem resposta, cada olhar desviado, era como um golpe no